Rubem Braga escritor que brilhou transformando tolices em pérolas.

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A crônica fica órfã

Braga: a prosa fiada do jardineiro do oásis

Cronista capixaba de Ai de ti, Copacabana.

Rubem Braga (Cachoeiro de Itapemirim, ES, a 12 de janeiro de 1913 – Rio de Janeiro, 19 de dezembro de 1990), escritor e jornalista que brilhou transformando tolices em pérolas. A partir de agora, desaparece da frente dos leitores um oásis de simplicidade e graça em meio ao labirinto de escritos atabalhoados a que estão sujeitos diariamente os cidadãos do país que se dedicam a qualquer tipo de leitura. A escrever romances (que não gostava de ler), poesias, ensaios, ou qualquer outro gênero de prestígio na literatura, o jardineiro do oásis se dedicava exclusivamente à crônica, esse gênero circunstancial feito para a leitura imediata e desatenta. Só de tempos a tempos reunia suas crônicas em livros – seu território de ação eram os jornais, e não lhe importava saber que no dia seguinte suas palavras serviriam para embrulhar peixe. Isso porque, entretido em saborear cada minúcia da vida, não lhe ocorria disputar um lugar na posteridade, transformar-se num pilar da literatura, cimentar sua obra em qualquer panteão do beletrismo.

Assim era o escritor capixaba, o sabiá dos cronistas Rubem Braga, considerado por muitos o maior cronista brasileiro desde Machado de Assis. Escrever apenas crônicas, publicá-las em folhas de papel destinadas ao lixo, desprezar a fama – nada disso tirou do escritor de Cachoeiro de Itapemirim a glória de atravessar a existência como um dos maiores autores brasileiros de sua época. “Sou do tempo em que os telefones eram pretos e as geladeiras brancas”, escreveu ele há poucos anos, numa observação típica de seu estilo enxuto, irônico, lírico e extremamente bem-humorado. O jardim literário de Braga é construído justamente de flores como essa. De seu posto de observador atento aos objetos e às cenas mais banais da paisagem, qualquer paisagem, ele retirava sua matéria-prima.

PLANTAR BATATAS – Transformar a paisagem e o cotidiano em boa leitura é uma habilidade comum a muitos escritores. O que dá personalidade à prosa de Rubem Braga é que ela, em seus melhores momentos, é pura conversa fiada, bate-papo de esquina, de botequim. Entre os escritores que, junto com ele, popularizaram a crônica no país nos anos 60, reunindo-as em livros que se tornavam best-sellers, Fernando Sabino e Sérgio Porto optavam pela vertente do humor, da piada, Paulo Mendes Campos privilegiava o texto poético. Braga apenas conversava com o leitor, comentando sobre um pouco de tudo. Descrevia a vida do redator agrícola de um jornal, “um homem encarregado de explicar diariamente a seus leitores qual o melhor meio de planatr batatas”. Sugeria a criação de uma política nacional para a cachaça, “o Brasil é o único país do mundo que não leva a sério sua bebida nacional”. Descrevia as miudezas de seu dia a dia e expunha lembranças de sua cidade natal. Quando não tinha assunto, dava-se ao luxo de escrever sobre a falta de assunto, e nesses momentos seu texto era melhor ainda, como observou certa vez o poeta Manuel Bandeira. “Ser cronista é viver em voz alta”, dizia.

COTOVELO – O grande talento de Braga, e que perpetua sua obra, é justamente transformar bobagens do cotidiano, divagações absolutamente tolas, em narrativas leves, próprias para se ler em tardes preguiçosas ou quando não se tem vontade de ler mais nada. É impressionante sua capacidade de envolver o leitor com temas que, a princípio, não interessariam a ninguém. “Aqueles arcos da Lapa com o bondinho passando em cima é o que pode haver de mais Rio antigo”, começava ele uma crônica, fornecendo ao leitor a turística mais óbvia possível sobre o Rio de Janeiro. Em seguida, porém, emendava observações irresistíveis: “E uma dupla fileira de arcadas com 18 metros de altura e 270 de comprimento. Isso, bem entendido, hoje em dia, porque quando terminou a construção (1750) ainda não existia o metro (nem o metrô, diga-se de passagem), era tudo jarda com 3 pés e pé com 12 polegadas, assim por diante”. Pura bobagem, mas se percebe na crônica a passagem do tempo, mudando inclusive as medidas.

Foi através de crônicas como essa que a literatura de Rubem Braga se transformou num oásis. Existia um abismo entre o que ele escrevia – nos últimos tempos, publicava suas crônicas aos sábados no jornal O Estado de S. Paulo – e o que se escreve no Brasil de hoje, inclusive nesta revista. Um abismo que separava suas crônicas das de outros autores do gênero, como Josué Montello ou Affonso Romano de Sant”Anna, e dos trombeteadores de grandes verdades, que ocupam páginas para convencer os leitores de fatos ou teorias que consideram fundamentais para a existência humana. Perto de Rubem Braga, todos esses cronistas e comentaristas parecem analfabetos, chatos, arrogantes ou burros. No mundo do cronista capixaba, fundamental era a pachorra para observar e refletir sobre um cotovelo feminino excepcionalmente bonito, ou sobre pequenos detalhes da natureza, e dessas contemplações arrancar pequenas lições de vida ou tiradas impagáveis. Braga adorava a vida ao ar livre – em seu apartamento de cobertura, em Ipanema, mantinha um jardim completo, com pitangueiras, passarinhos, tanque de peixes e tudo – e preocupava-se com a natureza muito antes que a ecologia se tornasse moda.

Rubem Braga tinha uma respeitável coleção de idiossincrasias. Admitia sem muitos rodeios, por exemplo, não ter imaginação para escrever histórias de maior fôlego, romances. Talvez a maior de suas contradições, porém, e justamente a que ajuda a melhor entender sua posição diante do ofício, é que ele não tinha lá muito ciúmes de seus escritos. Se um editor de jornal, ao receber uma crônica, ligasse para ele para negociar alguma modificação no texto – um par de vírgulas fora do lugar, uma frase de compreensão difícil -, sua resposta era sempre a mesma: “Mexa como quiser, faça o que achar”. Era um escritor disposto a incorporar qualquer recurso que lhe fosse sugerido, até porque não havia meio de contaminar suas crônicas. Por escrever quase exclusivamente em jornais, Braga não achava que tinha um nome a zelar, uma reputação ou mesmo uma obra. Ele não se pautava por qualquer desses conceitos abstratos que costumavam servir de escudos para escritores de muita pompa e pouca prosa.

O que importa é que a língua portuguesa, em sua forma mais simples, direta e elegante, palpita em tudo o que escreveu. Da mesma forma que, vez por outra, abandonava seus temas mais frequentes para arriscar voos inesperados. Um desses voos de maior alcance ocorreu depois que, no início dos anos 80, decidiu conferir de perto o então fenômeno da MPB Rita Lee. Foi a dois shows da cantora, entrevistou-a nos camarins e saiu com uma de suas crônicas mais surpreendentes. “Não me lembro mais o que ela cantava, nem mesmo se cantava, sei apenas que ela se agitava junto à orquestra com as coxas incessantes e uma extraordinária graça”, começava a crônica, lembrando-se da primeira vez que a vira, no tempo do conjunto Os Mutantes, e concluía o texto com um parágrafo de frase única: “Adeus, ruiva andorinha”. Nas suas observações, o escritor captou como ninguém o que Rita tinha de melhor e transformou a graça e alegria da cantora numa crônica esvoaçante. As mulheres ocupam o centro de alguns dos melhores textos de Rubem Braga. Em alguns deles, o cronista se disfarça de romântico arrebatado: “Era tão linda assim, entardecendo, que me perguntei se já estávamos preparados, nós, os rudes homens destes tempos, para testemunhar a sua fugaz presença sobre a terra”. Em outras, coloca em ação sua veia irônica, como no caso da mulher do interior paulista que se diverte escrevendo cartas anônimas para os jornais, e que ninguém na redação tem paciência de responder. “Responda você, literato, que é entendido em senhoritas. Prometo ajudá-lo quando o consultarem a respeito de vacas ou cebolas”, diz-lhe o tal radator de assuntos agrícolas.

“EU MESMO” – A última de Rubem Braga foi justamente sua morte, cercada do lirismo e até do humor que marcaram suas melhores crônicas. Em maio de 1990, recebeu o diagnóstico médico de que estava com câncer. Em vez de submeter-se a tratamentos quimioterápicos ou cirurgias, decidiu simplesmente não tentar debelar a doença e deixar que a morte – “o assim chamado descanso eterno”, como escreveu certa vez – chegasse lentamente. Foi internado duaz vezes. Não mudou de ideia quanto ao tratamento. Em novembro, viajou a São Paulo para preparar seu funeral. Foi ao crematório e pediu: “Quero encomendar a cremação de um defunto”. “Pois não, qual o nome dele?”, perguntou-lhe o funcionário. “Rubem Braga, eu mesmo”, ele devolveu.

No dia 19 de dezembro, Braga foi internado às pressas, mas não resistiu. “Ele foi o melhor dos amigos, e sempre ficou do meu lado nas dificuldades”, desabafou, chorando, a atriz Tônia Carrero, uma das poucas pessoas que privavam de sua intimidade. O sabiá deixa um filho, o publicitário Roberto Braga, de seu único casamento, com Zora Seljan, de quem se separou no início dos anos 50. Mas dificilmente deixará discípulos ou seguidores. Os jovens escritores de hoje interessam-se gêneros mais nobres da literatura e, além do mais, Braga era um solitário convicto, que jamais levantou uma palavra para convencer a alguém das virtudes da crônica ou de seus próprios escritos. Para ele, ganhar dinheiro com crônicas e viver em quase reclusão foi uma conquista dura. “Chegou uma hora que cansei de trabalhar”, comentava, referindo-se a uma longa carreira de jornalista que começou com a cobertura da Revolução Constitucionalista de 32 para um jornal de Belo Horizonte, passou pelo posto de correspondente na Itália durante a II Guerra Mundial e prosseguiu por muitos outros órgãos de imprensa cariocas e paulistas.

“Havia umas entrevistas insuportáveis sobre política e economia que eu era obrigado a fazer. Hoje, me parece que escrevi como obrigação diária durante milhões de anos”, disse certa vez. Do jornalista, poucos irão se lembrar. O cronista, no entanto, passa à História cercado de suas pitangueiras e seus passarinhos, de suas mulheres bonitas ou pitorescas, das paisagens de sua Cachoeiro do Itapemirim e de tantas lembranças antigas ou recentes que ele soube transformar em puro prazer para os leitores.
O cronista Rubem Braga morreu aos 77 anos em virtude de um câncer na laringe, no Rio de Janeiro.

As tiradas do sabiá

“Os jornais noticiam tudo, menos uma coisa tão banal de que ninguém se lembra: a vida.”

“Sim, cachaça faz mal e, quanto mais, pior. Mas foi com a cachaça que o brasileiro pobre enfrentou a floresta e o mar e construiu essa confusão meio dolorosa a que hoje chamamos Brasil.”

“Nunca vivi a coisa literária. Sempre escrevi para ser publicado no dia seguinte. Como o marido que tem que dormir com a esposa: pode achar gostoso, mas é uma obrigação.”

“Acho o memorialismo um gênero chato. Os memorialistas só escrevem aquilo que deixa mal as pessoas, nunca eles próprios.”

“Todo rapaz de 20 anos acha que os editores têm obirgação de publicar seus suspiros poéticos e, quando não ataca os editores, mete o pau no governo que deveria proteger a literatura e as artes. Mas o dinheiro do povo não é para aliviar dor-de-cotovelo de jovens bardos.”

“Estou cansado de saber que sou eu mesmo.”

“Antigamente diziam que ou o Brasil acabava com a saúva ou a saúva acabava com o Brasil. Agora estou bastante velho e me lembro dessa história e vejo que continua havendo saúva e continua havendo Brasil. Por isso é que eu digo: o pessoal é muito afobado.”

“Desejo a todos, no Ano-Novo, muitas virtudes e boas ações e alguns pecados agradáveis, excitantes, discretos e, principalmente, bem-sucedidos.”

(Fonte: Veja, 26 de dezembro de 1990 – ANO 23 – Nº 51 – Edição n° 1 162 – CULTURA – Pág; 106/107)
(Fonte: zero hora – ANO 48 – N.° 16.876 – 19.12.11 – Almanaque Gaúcho/ Por Ricardo Chaves – Pág; 54)

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