Ulysses Guimarães (1916-1992), último representante de uma geração de políticos

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O herói da democracia

Sua autoridade moral vinha lá de longe, de sua trajetória de democrata, da paixão com que executava o serviço, da certeza de que, havendo uma boa causa, ele estaria sempre lá, e de fato de ser um profissional da política que soube exercê-la no tom mais alto, no limite da utopia

Ulysses Guimarães (Itirapina, 6 de outubro de 1916 – Angra dos Reis, 12 de outubro de 1992), político e advogado brasileiro. Era o último representante de uma geração de políticos liberais capaz de manter o contato com o povo e prezar os valores da democracia. O inigualável artista da resistência. A política era uma estética, para ele, e a democracia uma religião, que defendia com autoridade única.

Formou-se advogado pela USP (Universidade de São Paulo), em 1940. Foi vice-presidente da UNE e secretário da Federação Paulista de Futebol. Elegeu-se deputado estadual em 1947, pelo Partido Social Democrático (PSD). Três anos depois, concorreu à Câmara dos Deputados, sendo reeleito em 1954 e em 1958, quando foi também delegado do Brasil junto à ONU.

O encontro com o destino estava no fundo de um copo de uísque. Numa noite de 1973 Ulysses Guimarães encontrou o amigo Luís Lopes Coelho no Pep s, o bar da moda entre os boêmios intelectuais de São Paulo. Luís Coelho, um advogado de sucesso que, nas horas vagas, escrevia contos policiais, era insuperável para conduzir a duas coisas: uma avassaladora bebedeira, do tipo de deixar a vítima inválida, no dia seguinte, e uma conversa que, instigada por sua inteligência nervosa, jamais perdia o pique. “Tomamos uma porção de uísques”, contou Ulysses anos depois, em 1978, numa entrevista do Pasquim. Quando se cansaram do Pep s, foram tomar mais ainda na casa de Luís Coelho.

Ulysses estava decidido que seria candidato do MDB, o pífio partido de oposição ao regime militar, à Presidência da República, na sucessão do general Emílio Medici, a ser sacramentada em janeiro do ano seguinte no embuste sazonal chamado “colégio eleitoral”. Se tudo era um jogo de cartas marcadas, que só servia para fantasiar de ritual democrático as cerimônias de troca de guarda do regime, e mesmo assim fantasiar só para os muito estúpidos ou muito mal-intencionados, havia o perigo de ele ser massacrado numa das duas voltas de um pêndulo infame. Ou acabaria se prestando para coonestar o regime, dando aparência de disputa àquilo que até as pedras sabiam não ser, ou poderia cair no ridículo.

“Preciso colocar as coisas direito desde o começo, senão isso vai virar uma farsa”, disse Ulysses a Luís Coelho, segundo relatou ao Pasquim. De repente deu-se o achado, surgiu a ideia: vou ser o anticandidato!” Com a ajuda de “um certo banho etílico”, segundo Ulysses, havia surgido a anticandidatura. Ele havia descoberto uma palavra, o que não é pouco, para um político que a vida toda, como um poeta, dependeu delas, mas não era só. Havia também descoberto um estilo, um jeito de entrar no jogo. E ainda não era só. Naquele momento, ao embalo da noite vagabunda, entre o uísque e as piadas de Luís Coelho, Ulysses Guimarães descobriu Ulysses Guimarães.

Ele seria candidato para mostrar como era absurdo ser candidato. Para denunciar uma situação. O discurso com que Ulysses aceitou sua candidatura, na convenção nacional do MDB, no dia 22 de setembro de 1973, em Brasília, é uma das melhores peças produzidas na política brasileira nas últimas décadas. Começa assim, com uma exposição que tem o conteúdo explosivo da clareza didática, quando usada para desmontar o mecanismo de uma armação malsã:

“O paradoxo é o signo da presente sucessão presidencial brasileira. Na situação, o anunciado como candidato em verdade é o presidente. Não aguarda a eleição e sim a posse. Na oposição também não há candidato, pois não pode haver candidato a lugar de antemão provido”.

MOMENTO NEGRO – Mesmo assim, nesse discurso, o mesmo em que anunciaria que “navegar é preciso”, ele diz que fará campanha:
“Não é o candidato que vai percorrer o país. É o anticandidato, para denunciar a antieleição, imposta pela anticonstituição que homizia o AI-5, submete o Legislativo e o Judiciário ao Executivo, possibilita prisões desamparadas pelo habeas-corpus e condenações sem defesa, profana a indevassabilidade dos lares e das empresas pela escuta clandestina, torna inaudíveis as vozes discordantes, porque ensurdece a nação pela censura à imprensa, ao rádio, à televisão, ao teatro e ao cinema”.

Estava-se no governo Medici, recorde-se. Ponto mais negro do regime. E Ulysses Guimarães começava a ser, exatamente naquele instante, o Ulysses que conhecemos e admiramos. A anticandidatura foi sua primeira grande inspiração, a primeira grande obra de um artista da política que depois iria aprofundar-se em realizações semelhantes como o grande Ulysses, o político mais respeitado do Brasil nas últimas décadas, com Tancredo em segundo lugar, para falar do mesmo período, e, caso se recue no tempo, encontrando ambos apenas em Juscelino Kubitschek um outro monumento capaz talvez de alçar-se mais alto. Por coincidência, os três morreram de forma inopinada. Dois tiveram funerais extraordinários, a atestar que morreram no apogeu da estima do povo.

Ulysses conseguiu seu primeiro mandato em 1947, quando se elegeu deputado estadual em São Paulo, aos 30 anos, e o primeiro mandato de deputado federal em 1950, para nunca mais perdê-lo. De 1950 a 1964 foi um político bom, tanto que, na flor de seus 39 anos, elegeram-no presidente da Câmara, em 1956, e em 1961, no gabinete parlamentarista chefiado por Tancredo Neves, foi feito ministro da Indústria e Comércio. Era bom, mas ainda estava longe do primeiro time. Eram tempos de Kubitschek e Jânio, Carlos Lacerda e João Goulart. Ninguém ia se lembrar do paulista de Rio Claro, bacharel em Direito e dado às frases bonitas.

Decididamente ele tampouco ainda era o Ulysses verdadeiro na convulsão de 1964, que o apanha, senão no apoio ao movimento militar, eplo menos numa neutralidade muito conveniente para a consolidação do novo regime. O mais negro momento de sua biografia foi revelado apenas por algumas poucas fontes indiscretas, entre as quais o livro de memórias do senador gaúcho Daniel Krieger, publicado em 1976. Nos primeiros dias de abril de 1964, segundo Krieger, Ulysses fez parte de uma comissão de deputados, composta ainda por Pedro Aleixo, Adauto Lúcio Cardoso, Paulo Sarasate e João Agripino, que redigiu um projeto de endurecimento do regime, tal qual era reclamado pelos militares. Desse projeto constariam instrumentos de arbítrio como a cassação de mandatos. Os militares acabaram preferindo um texto que haviam encomendado aos juristas Francisco Campos e Carlos Medeiros, transformado no Ato Institucional número 1. “Devo registrar, entretanto”, afirma Krieger, “que o redigido pelos citados parlamentares não era mais liberal que o dos eminentes mestres”.

Ou seja: Ulysses escapou por pouco de passar para a História como redator do AI-1. E isso não foi tudo. Ele votou em Castello Branco para presidente, no colégio eleitoral de 11 de abril de 1964, primeiro gesto de adesão ao novo regime exigido dos parlamentares. Seu amigo Tancredo, já a essa altura companheiro de antigas lides, além de correligionário no PSD, o mítico partido das raposas mais felpudas da política brasileira, marcou seu protesto pela abstenção, algo que pode parecer esquisito a quem se acostumou a pensar em Ulysses como o radical em relação ao moderado Tancredo, Ulysses o ponta-de-lança em comparação com o Tancredo vocacionado para a retaguarda.

Não, Ulysses ainda não havia nascido em Ulysses, insista-se. E se nasceu ninguém teve oportunidade de notar, foi só para consumo íntimo, quando optou pelo MDB, em 1966, por ocasião da dissolução dos antigos partidos. Mesmo em 1971, a rigor, quando o general-senador Oscar Passos, primeiro presidente do MDB, deixa seu posto, por não ter conseguido a reeleição, no Acre, e passa o cargo para Ulyses, seu vice, o Ulysses que surge é uma figura secundária em relação ao líder do partido na Câmara, Oscar Pedroso Horta, personalidade dominante da oposição, se é que se pode falar em seja lá quem for com papel dominante numa oposição tão raquítica e irrelevante.

FRASES – “O homem é o homem e sua cisrcunstância”, disse mil vezes Ulysses, citando Ortega y Gasset. Ele gostava de repetir sempre as mesmas frases. “O segredo da felicidade é fazer de seu dever o seu prazer”, era outra, de Alphonse Karr, que ele citou mil vezes. Outra ainda: “A impaciência é uma das faces da estupidez”. O homem é o homem e sua circunstância de Ulysses foi o primeiro espetáculo público montado pelo MDB, aquele em que o partido, por insistência de sua ala mais combativa e esquerdista, um grupo ao qual se dava o apelido de “autênticos”, saiu para a rua e mostrou sua cara, e ao qual o talento de Ulysses conferiu o nome de anticandidatura.

O anticandidato percorreu o país pregando eleições, liberdade, abaixo a censura e vida a democracia. Na qualidade ele era a pessoa na medida para conciliar os autênticos com os moderados do MDB, missão que por anos a fio repousaria em seus pmbros. Mas houve mais. Naquela campanha memorável, ele fixou a voz e o tom ao qual o país se habituaria. Que gosta de resultados, semeou um terreno cuja colheita foi, no ano seguinte, a eleição de onze senadores pelo MDB, que assim começou uma ascensão que o levaria, passo a passo, conquista a conquista, à glória de tomar de assalto o colégio eleitoral, no momento final de derrocada da ditadura, com a eleição de Tancredo, em 1985.

Ulysses fez-se Ulysses no episódio da anticandidatura, momento em que saiu da casca e soube encontrar-se com sua circunstância. Mas que Ulysses é esse que saiu daí, que personagem era esse que, num momento de desconfiança nos políticos e mesmo de crise de confiança na nacionalidade, mesmo assim morreu na admiração dos seus concidadãos? Ou por outra, a que deve ele seu sucesso, esse Ulysses da anticandidatura, que depois viraria o Ulysses das diretas já, depois o Ulysses que carregou Tancredo à vitória, depois o Ulysses da Constituinte e, enfim, o Ulysses do impeachment de Fernando Collor, a que deve ele essa flama, esse dom de farejar a causa e aglutinar em torno dela, conduzir e vencer?

Se cem vezes perguntassem a Ulysses, cem vezes ele apontaria como primeira virtude d eum homem público a única e mesma coisa, a coragem. “Sou fascinado pelo tema da coragem”, dizia. No livro Rompendo o Cerco, que publicou em 1978, reunindo discursos e outros documentos políticos, Ulysses incluiu, à guisa de prefácio, um “Decálogo do Estadista” em que alinha as qualidades a seu ver necessárias para o homem público. E lá está ela em primeiro lugar, a coragem. “O pusilânime nunca será estadista”, escreveu.

CACHORRO E URNA – É notável como a coragem permeia o universo de Ulysses. “Que Deus nos dê coragem, e força, para que não esqueçamos o povo e não reneguemos o teu exemplo e tua memória, Tancredo Neves”, disse ele de Tancredo, naquele fim de tarde triste entre todos, na política brasileira. Só mais insistente do que a coragem, em sua boca, era o seu avesso, invocado para ser exorcizado – o medo. “O medo tem cheiro. Os cavalos e cachorros sentem-no, por isso derrubam ou mordem os medrosos”, escreveu, no mesmo “Decálogo do Estadista”. Na Constituinte, rompeu um momento de impasse, em que a Assembleia se via esmagada pelas pressões do governo, com um grito que ficou famoso: “Viemos aqui para fazer uma Constituição, não para ter medo”.

Ulysses era um homem de coragem, eis uma percepção que a nenhum brasileiro escapava. Mas não era só. Ele tinha a coragem e também o dom para transformá-la numa dramaturgia. Célebre é a cena de Ulysses abrindo caminho entre os cachorros da Polícia Militar que tentavam impedir um comício do MDB, em Salvador, na campanha eleitoral de 1978. “Respeitem o presidente da oposição”, gritou. E foi entusiasmando, na embriaguez da resistência que era, visivelmente, seu vício maior, como para outros é a cocaína, e seu prazer supremo. Ele era a personificação da resistência. “Baioneta não é voto e cachorro não é urna”, gritou ainda, nessa mesma ocasião.

Pense-se nessa frase de cabeça fria. Alguém pode, em sã consciência, imaginar que cachorro é urna? Mas Ulysses não é para ser pensado a frio. Só a quente. Ulysses é para ser pensado ao fogo da utopia. “Em todos os grandes movimentos políticos precisa haver uma utopia”, dizia. Dizia ainda: “A de fazer coisas difíceis ou quase impossível é do ofício de estadista. Ninguém entrou na História pela porta do varejo da administração. Somente pelas atuações dramáticas”.

Ulysses arrepiava quando incandescia. No discurso de promulgação da Constituição, outra de suas obras-primas, aquele proclamado com “ódio à ditadura, ódio e nojo”, o momento mais marcante foi quando, ao abordar o tema do divórcio entre Estado e sociedade, na História brasileira, de repente enfiou no texto a pessoa de Rubens Paiva, deputado morto pelos militares. Gritou: A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram”.

ORGASMOS – Fora do calor da resistência e das campanhas, Ulysses se apequena. Ou, para ser mais generoso: se atrapalha. Na confusão entre ser ou não governo, durante o período Sarney, teve um desempenho lamentável. “O poder me dá orgasmos”, disse. Desconfia-se que por uma vez, ele que era sempre sincero, não foi. O que lhe dava orgasmo era a oposição. Melhor ainda, era a resistência. No poder, ou no semipoder que exerceu no período Sarney, tempos da desastrosa Aliança Democrática, perdeu-se no frenesi das nomeações, a que se entregou sem recato, ao mesmo tempo que revelava uma notória avaria em sua bússola, no que se refere a objetivos a atingir. Agora que a eficiência administrativa, pela primeira vez na vida, lhe era mais importante que o grito de resistência. Como um desastre nunca vem sozinho, sucedeu-se outro, o mais humilhante de sua carreira: um sétimo lugar na eleição presidencial, com 4,74 % dos votos.

Muitas vezes correu o boato da morte de Ulysses. N aúltima delas, em 1991, no dia 25 de outubro, ele afirmou, citando De Gaulle: “Eu não esquecerei de morrer”. Ele não esqueceu de morrer, mas esqueceu de avisar que ia morrer. Por isso, deixa uma certa desordem à sua volta. Havia execessos que só ele podia cometer, como proclamar, como o fez na véspera do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do processo a ser adotado na Câmara para o impeachment de Collor, que caso o Supremo decidisse pelo voto secreto a Câmara deveria desrespeitá-lo. Só ele tinha a estatura para num momento desses trepar em cima das instituições e dar-lhes um susto.

Ele podia fazer isso porque era uma instituição também. Tinha autoridade moral. Era o único brasileiro com tamanha autoridade moral, e sobre a nação inteira, uma autoridade que vinha lá de longe, ou lá do fundo de suas pálpebras, de sua trajetória de democrata, da paixão com que entregava ao serviço, da certeza de que, havendo uma boa causa, ele estaria sempre lá, e, por fim, da característica de ser um profissional da política que, como ninguém, exercia o ofício no tom mais alto, lá em cima, no limite da utopia.
O desaparecimento de Ulysses Guimarães num acidente de helicóptero no litoral sul do Estado do Rio de Janeiro deixou o país em estado de choque.

(Fonte: Veja, 21 de outubro de 1992 – ANO 25 – N° 43 – Edição n° 1258 – Brasil/ Por Roberto Pompeu de Toledo – Pág; 16/26)

6 de abril de 1987 – O deputado Ulysses Guimarães foi eleito presidente do PMDB pela 8ª vez consecutiva.
(Fonte: http://www.guiadoscuriosos.com.br/fatos_dia – 6 de abril)

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