Vassili Grossman, o Tolstói da Segunda Guerra
DISSIDENTE
É autor do romance épico ‘Vida e Destino’, uma das maiores obras literárias do século XX, comparável a ‘Guerra e paz’. Seu romance foi contrabandeado para o Ocidente
Vida e destino, de Vassili Grossman (1905-1964), é reconhecido como uma das obras-chave da literatura russa do século XX. Esse romance, porém, por pouco não desapareceu nos subterrâneos da KGB. Só foi publicado postumamente, graças à ação de amigos de Grossman, um escritor que, ao longo de sua vida, passou pelos altos e baixos da perseguição e das reabilitações na União Soviética.
Nascido de uma família judia de Berdichev, Ucrânia, que se identificava com a cultura russa bem mais que com a judaica, Grossman foi protegido de Maxim Gorki em sua juventude. Engenheiro de formação, abandonou essa carreira para dedicar-se integralmente à escrita a partir de 1930. Dez anos depois, foi nomeado para o Prêmio Stálin, a mais elevada honraria do establishment literário soviético, mas excluído da lista de candidatos pelo próprio ditador Stálin.
Durante a Segunda Guerra Mundial, foi correspondente no front do jornal militar soviéticoKrasnaia zvezda (Estrela vermelha) e presenciou a libertação dos campos de extermínio nazistas de Majdanek e Treblinka. Seus relatos sobre o que encontrou ali foram usados como testemunhos de acusação nos tribunais de Nuremberg, quando criminosos de guerra foram levados a julgamento. A mãe de Grossman, Yekaterina Saviélievna, a quem Vida e destino é dedicado, foi assassinada pelos alemães em Berdichev.
Vida e Destino é comparável, por suas dimensões e estrutura, a Guerra e Paz, de Tolstói, romance que Grossman lia durante os quatro anos que passou no front. Estrutura-se, igualmente, em torno da história de duas famílias, os Chápochnikovs e os Chtrums, classe média arrastada pela marcha desastrosa da história aos campos de concentração alemães e à Sibéria. Ocupa também lugar central no livro uma estarrecedora e detalhada descrição da batalha de Stalingrado. O conjunto forma um grande mosaico de época, que denuncia os horrores da guerra, mas também descreve a estranha esperança que mantém vivos os personagens. Retrata, igualmente, as distorções causadas à sociedade soviética pelo stalinismo, que impôs ondas de migração forçada, deportou grandes populações para regiões desoladas e forçou a coletivização das propriedades agrícolas, com grande violência.
A grandeza do livro está na alta voltagem poética de sua linguagem, preservada na tradução brasileira, tanto quanto em seu enredo, de grande complexidade, que mescla extensos diálogos com descrições de paisagens russas e europeias cheias de lirismo, além de digressões do narrador. Esses longos parênteses gravitam em torno de temas como o embate entre a religiosidade e o materialismo histórico marxista, ou a violência que, com a guerra, encontra livre curso não só nos campos de batalha, mas também em meio às populações civis, ou os campos de prisioneiros, que colocam as pessoas frente a frente com suas piores tendências e, ao mesmo tempo, com o cerne de sua humanidade.
As condições extremas da existência são a matéria que constitui as trajetórias de personagens como o velho bolchevique Mostovskoy, prisioneiro de guerra desiludido com as promessas do comunismo, ou Viktor Chtrum, físico judeu e, para muitos críticos, um alter ego do próprio autor, descrito impiedosamente por Grossman como “uma mediocridade cheia de paixões mesquinhas”.
Há no livro mais de uma centena de personagens menores, entre os quais conhecidas figuras históricas, como Hitler e Stálin, além de Adolf Eichmann, responsável pela logística dos transportes ferroviários que levavam massas de prisioneiros para as instalações de extermínio alemãs. O livro é, assim, uma longa meditação sobre o caráter perverso da história europeia do século XX e sobre a luta desigual da vida contra o destino, da luta daqueles que, ante a adversidade, se empenham, com todas as forças, para preservar ao menos um resto de sua humanidade.
Como o romance de Tolstói, Vida e Destino dá conta de grandes cataclismos por meio de seus reflexos nas existências de pessoas comuns. Ao focalizar o particular e o individual para falar do geral e do coletivo, Grossman reafirma uma visão de literatura própria dos modelos realistas em que foi educado, que tornam a arte indissociável dos acontecimentos políticos. Na visão dele, a esperança para a humanidade só pode estar nos pequenos gestos desinteressados dos indivíduos, na autenticidade das pessoas comuns, na fragilidade e na força da bondade humana. Como no gesto dos amigos que salvaram seu livro.
Durante os “anos negros” do stalinismo no pós-guerra, Grossman tornou-se um crítico cada vez mais acerbo do regime. Foi denunciado por Stálin no “complô dos médicos” de 1953, episódio em que médicos judeus eram falsamente acusados de tentar matar os líderes soviéticos e que desencadeou uma onda de expurgos. Sua obra passou a ser considerada ideologicamente inaceitável. Seus livros saíram de circulação, e seu nome foi esquecido.
Reabilitado por Nikita Kruschev em 1955, começou a trabalhar em Vida e destino, livro destinado a se tornar sua obra mais importante e seu testamento literário. Quando o romance foi concluído, em 1960, Grossman outra vez caiu em desgraça. A KGB decidiu confiscar seus manuscritos, recolher todas as cópias e até mesmo sumir com a fita de sua máquina de escrever, para evitar que ele tentasse recuperar o texto a partir das marcas nela deixadas. O Politburo informou-lhe que o romance ficaria proibido por 250 ou 300 anos.
Grossman ainda se empenhou em conseguir de Kruschev a “libertação” de seu manuscrito confiscado. Em carta enviada a Kruschev, então secretário-geral do partido, escreveu: “De que adianta deixar-me fisicamente em liberdade, se o livro a que dediquei minha vida permanece preso? Não quero renunciar ao que escrevi. Peço a libertação do meu livro”. Foi em vão. Amargurado, morreu em 1964, de câncer no estômago. Liôlia Klestova, sua amiga, tinha uma cópia datilografada que lhe fora passada por Grossman antes da blitz da KGB. Ela passou-a a outro amigo, Viatcheslav Lobodá. Em 1974, Lobodá fez um microfilme dessa cópia e, com a ajuda do físico Andrei Sákharov e de uma rede dissidente, o microfilme chegou ao Ocidente, dentro de um maço de cigarros.
Vida e destino foi finalmente publicado em russo em Lausanne, Suíça, em 1980. Em 1983, saiu a tradução francesa e, no ano seguinte, outra, italiana. Desde então, a obra não cessa de ganhar importância, não só como testemunho da Segunda Guerra Mundial e da história do stalinismo, mas também como obra literária de envergadura poucas vezes igualada.
Só em 1989 Vida e destino foi publicado na Rússia, com base em outra cópia, encontrada nos arquivos da KGB, corrigida por Grossman antes de ser confiscada. Ela trazia várias diferenças com relação ao microfilme. Essa é considerada a versão definitiva do romance, em que se baseia a tradução brasileira.
(Fonte: http://epoca.globo.com/vida/noticia/2014/11 – LUIS KRAUSZ – 28/11/2014)
Livro tido como inimigo por regime soviético; leitura é soberba e permite conselhos atuais
As ditaduras veem os livros como inimigos. Em geral, mais por suas fraquezas e contradições do que pelo potencial balístico de algumas centenas de páginas.
É famosa a narrativa do encontro do ditador Costa e Silva com a condessa Pereira Carneiro, então dona do “Jornal do Brasil”. Costa e Silva reclamava de reportagens publicadas pelo diário, quando a proprietária justificou. “São críticas construtivas.” Ao que, o general respondeu: “Eu não quero críticas construtivas. O que quero é elogio mesmo”.
Vassíli Grossman (1905-1964), autor soviético nascido na Ucrânia, escreveu “Vida e Destino” ao longo de dez anos, de 1950 a 1960. Morreu sem ter visto a obra publicada. Por causa de lúcidas críticas a Stálin e ao regime comunista, o livro foi considerado antissoviético.
Grossman, à procura de editor, distribuiu cópias do livro a jornalistas que imaginava amigos. Em 1961, a KGB, serviço secreto soviético, invadiu o apartamento do escritor. Os agentes apreenderam uma versão datilografada do romance e o manuscrito original do autor. Neste havia todos os esboços e rascunhos dos capítulos não incluídos na versão final, partes que foram excluídas a conselho de amigos como sabidamente “censuráveis em virtude do teor político”.
Deprimido, Grossman apelou até ao primeiro-secretário do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, Nikita Khrushchev:
“Os métodos com os quais querem deixar em sigilo tudo o que aconteceu com o meu livro não são métodos de combate à mentira ou à calúnia. Não é assim que se luta contra a mentira. Assim se luta contra a verdade. Não há nenhum sentido em minha liberdade física, quando o livro ao qual eu dediquei a minha vida encontra-se preso. Peço liberdade para o meu livro”, protestou.
O manuscrito e o texto datilografado ficaram trancados em cofres do Estado por 52 anos. O livro foi editado na Europa em 1980, graças a uma cópia que Grossman deixara com um amigo, o poeta Semion Lípkin. Somente em 1988 a obra foi lançada na URSS, em uma versão incompleta.
Em 2013 o governo russo, herdeiro do estado soviético em todos os sentidos, tirou o manuscrito do cofre do serviço secreto e o colocou à disposição de pesquisadores para consultas. Com os capítulos inéditos antes censurados.
Uma das muitas passagens magistrais do livro serve como conselho: “Os homens bons e maus são igualmente capazes de fraqueza. A diferença é que um homem mau vai ter orgulho toda a sua vida de uma boa ação, enquanto um homem honesto dificilmente vive consciente de seus bons atos, mas se lembra de um único pecado por anos a fio”.
(Fonte: https://br.mulher.yahoo.com/blogs/plinio-fraga/livro-tido-como-inimigo-por-regime-sovietico-esta-162002697 – MULHER – Plínio Fraga – 02/03/2015)