William Luna, veterano da gravação de discos no Brasil
Nomes fundamentais da MPB, como Cartola, Jamelão, Elza Soares, Fagner, Alcione, Fafá de Belém, Novos Baianos e Belchior, gravaram no estúdio Haway
William Araújo Luna (Fortaleza, Ceará, 1939 – Copacabana, Rio de Janeiro, 7 de julho de 2018), veterano da gravação de discos no Brasil, era dono do estúdio Haway, um dos melhores estúdios de gravação de discos do Rio de Janeiro.
Orgulho do cearense William Araújo Luna, o Haway se preparava, naquele começo de anos 1970, para se tornar um dos melhores estúdios de gravação de discos do Rio de Janeiro. Luna investira em uma série de obras no prédio de três andares na Rua Costa Ferreira, número 102, bem atrás da Central do Brasil, e comprara equipamento de som de última geração. Trabalhador incansável — e festeiro invejável —, ele marcou a inauguração do novo estúdio para uma noite em que os técnicos, entre eles um jovem Flávio Senna, ainda estavam soldando fios da mesa de som. Um acidente, enquanto acontecia a festa, fez com que o equipamento não pudesse ficar pronto para a gravação do dia seguinte, com a Banda do Corpo de Bombeiros. Mas o dono do Haway não se abalou.
“A banda tocou umas seis, sete músicas, e o maestro pediu para ouvir como tinha ficado”, contou Senna, hoje um dos maiores técnicos de estúdio do país, mas que, naquela manhã, suou frio, sabendo que nada tinha sido gravado. “Seu William disse que não dava para ouvir, porque ainda tinha de ‘revelar’ a fita. Consertamos o equipamento e aí ele comunicou à banda que a performance não tinha ficado boa e que era melhor gravar de novo, com mais afinação. Os músicos concordaram, e ele ofereceu a chance de fazer tudo de novo, sem custo, e num suposto gravador novo que dispensava, inclusive, a tal ‘revelação’.”
Essa é apenas uma das mil histórias do Haway, estúdio onde gravaram nomes fundamentais da MPB, como Cartola, Jamelão, Elza Soares, Fagner, Alcione, Fafá de Belém, Novos Baianos e Belchior, além de boa parte do samba dos anos 1980.
O patriarca trabalhou até o último dia de vida e morreu dormindo. Há dois anos, depois de perder na Justiça, em processos trabalhistas, o prédio do Haway, ele levou o equipamento todo para casa e produzia projetos pequenos, para intérpretes de música gospel. Na noite da morte, preferiu não dormir no quarto — e armou a cama perto da mesa de som, já que tinha gravação de manhã.
“Ele era um visionário. Havia uma placa no estúdio que dizia ‘Eram quatro canais (de gravação), viraram oito e, em breve, serão 16’ (a placa foi atualizada quando o estúdio chegou aos 16 canais)”, disse Luis Fernando Oliveira da Silva, o Nando, baixista do Roupa Nova, que gravou lá em 1975 com o grupo Famks, embrião do RN. “O William montou uma mesa de som revolucionária, todo mundo aprendeu ali a fazer disco. Ele deu a tela onde pintamos nossas obras.”
O caminho até o sonho foi longo. Nascido em Fortaleza, ele foi para o Rio tentar a sorte como sanfoneiro. Trabalhou no Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) e abriu uma loja de peças automotivas que lhe permitiu comprar, no fim dos anos 1960, tanto o Haway quanto o estúdio Somil, em Botafogo, especializado em dublagem — e ainda montou o selo fonográfico Esquema, pelo qual editou muitos LPs de samba e forró. Após a reforma do Haway, William Luna passou a alugar as duas salas de gravação para Som Livre, CBS e PolyGram, e também para a TV Globo, que registrava lá as vinhetas de sua programação.
“Os anos 1970 foram uma época muito boa, as gravadoras tinham uns 100 artistas cada uma, todo dia tinha gravação”, recordou o cantor Hyldon, que gravou no Haway seu LP de 1977, Nossa história de amor. “Às vezes, tínhamos de recusar trabalhos”, afirmou Flávio Senna, que começou a trabalhar no estúdio em 1970, mal saído da adolescência. “Uma vez, o (publicitário) Marcus Pereira resolveu fazer um LP com o Cartola (que até então nunca tivera um LP só seu) e fui o técnico escalado. O Cartola era inibido ao extremo e fui lá conversar com ele. ‘Bebe o quê?”, perguntei. Ele pediu um conhaque e lá fui eu comprar no bar da esquina.”
Moraes Moreira, que gravou no Haway discos com Novos Baianos e Dodô e Osmar, lembrou que o estúdio era “um espaço muito aconchegante”. Só que… “Toda vez que a gente ia lá acabava passando por alguma blitz”, contou. “Bastava a polícia ver aqueles cabeludos que eles mandavam parar o carro. A gente tinha de ficar ligado, não podia estar com nada em cima, e gastava muita conversa com os policiais, aquele papo de que era tudo artista, que estava ali para gravar.”
O Haway era, de fato, aconchegante. Vidrado em arquitetura, Luna construiu até uma piscina aquecida no térreo. “O pessoal armava um pagode e tinha gente que caía de roupa e tudo”, disse Hyldon. Na dúvida entre sair ou não na calada da madrugada, muitos músicos ficavam por lá mesmo e dormiam num do sofás. Caso de Bira de Souza, que tocava surdo e que de tanto ficar no prédio acabou conhecido como Bira Haway. “O William foi o maior incentivador de minha carreira”, afirmou o músico, que, nos anos 1980, tornou-se um prestigiado produtor de samba. “O estúdio funcionava 24 horas por dia, virávamos algumas noites lá. Cheguei a passar uma semana lá sem voltar para casa, aprendi muito ali.”
Quem passava algum tempo no Haway corria o risco de cair nas graças do patrão — caso do faz-tudo do estúdio, em quem Luna resolveu apostar como cantor, bancando-lhe um LP. Lançado em 1978, No toca-fita do meu carro fez de Bartô Galeno um astro da música brega. Por outro lado, ele não hesitava em despachar os músicos que não considerava bons — especialmente os sanfoneiros, que ele mesmo substituía nas gravações de seus adorados discos de forró. “O William falava sempre: ‘Deixa eu botar uma piano de teta aí nessa gravação’”, divertiu-se Bira Haway.
O bom humor do Haway, onde eram gravados os discos das escolas de samba de diversas cidades do país, de Juiz de Fora a Manaus, só foi abalado em 1981, quando Luna teve de responder na Justiça à acusação de ter usado as prensas de disco que tinha num galpão na Avenida Brasil e feito cópias piratas de um LP de Roberto Carlos, encontradas à venda em uma loja em Caxias. “É um assunto tabu para a família toda”, disse William Luna Jr.. “Meu pai nunca contou nada sobre isso e, na época, os amigos influentes das gravadoras ofereceram apoio a ele. A CBS era um cliente muito forte dele, não vejo muito sentido nas acusações.”
Uma lembrança que se vai, em parte, com a morte de William Luna, na madrugada do último dia 7 de julho de 2018, aos 79 anos, de um ataque cardíaco em seu apartamento em Copacabana. “Ele era muito indisciplinado e sempre evitou ir ao médico”, disse o neto Arthur Luna, de 25 anos — o mais novo de uma linhagem de técnicos de gravação que inclui o pai, William Luna Jr.
O Haway seguiu funcionando, com alguma expressão, até o começo dos anos 1990. Luna o frequentou diariamente e cuidou de seus negócios até o fim. Sua morte encerra, mesmo que simbolicamente, uma era da gravação de discos no Brasil.
“Não existe mais um estúdio com um som de bateria como aquele”, lamentou Bira Haway. “Lá tinha espaço para botar muitos músicos, a base ficava com pressão. Pode pegar um disco de 1979 e ouvir: era um som diferente, um som à vera. Você ouvia até a respiração do cara da flauta. Hoje em dia fica tudo empastelado.” E bem menos divertido, os veteranos hão de concordar.
(Fonte: https://epoca.globo.com – CULTURA / POR SILVIO ESSINGER 20/07/2018)