Yuri Vladimirovich Andropov (Stavropol, 15 de julho de 1914 – Moscou, 9 de fevereiro de 1984), secretário-geral do Partido Comunista e Presidente da União Soviética.
UM NOVO INÍCIO NA URSS
A morte de Yuri Andropov depois de um breve reinado lança de novo a potência comunista na busca de um líder aceito em casa e no mundo
A morte de Yuri Vladimirovich Andropov, aos 69 anos de idade, num quarto da clínica Kremlinovka, nos arredores de Moscou, foi tão esquiva quanto sua vida e tão silenciosa quanto sua doença. Depois de definhar a olho nu durante alguns meses, e sumir das vistas do público ao longo de 176 dias – deixando o colossal império soviético à deriva e o resto do mundo em suspense -, o quinto* homem a chefiar sozinho a União Soviética, desde a revolução Bolchevique de 1917 apagou justamente quando sua ausência começava a ser digerida como uma anomalia normal.
Apesar da discrepância com as versões iniciais, não houve surpresa com o laudo médico divulgado pelo professor Yevgeny Chazov – o mesmo cardiologista do Kremlin e membro recente do Comitê central que assinara, quinze meses atrás, o atestado de óbito de Leonid Brejnev, antecessor de Andropov no comando da URSS. O que até então vinha sendo chamado oficialmente de resfriado, em Moscou, passou a ser friamente descrito como um coquetel de males agravados por uma insuficiência renal crônica. Andropov morrera às 16h50 do dia 9 e fevereiro de 1984, dizia o comunicado oficial expedido às 14h20 do dia seguinte. Em outras palavras, quando todos os locutores de rádio e televisão da URSS finalmente foram autorizados a ler a notícia simultaneamente, Andropov já estava morto há quase 22 horas.
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*Tecnicamente, Andropov foi o sexto líder soviético depois da morte de Josef Stalin, se for contada a meteórica passagem de Georgi Matenkov pela chefia do governo em março de 1953. Matenkov ficou apenas oito dias no comando; aposentando-se precocemente, foi substituída por Nikita Kruchev. Aos 81 anos em 1984, vivia na prefeitura em Moscou.
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Ademais, os 270 milhões de soviéticos foram os últimos a saber. 50 minutos antes, durante uma reunião ministral da Comunidade Econômica Européia com países da África e do Caribe, em Bruxelas, o chanceler da França, Claude Cheysson, interrompeu os trabalhos para dar a espetacular notícia e pedir um minuto de silêncio. Andropov morreu, anu8nciou o chanceler Cheysson. Até o final da semana, os serviços de informações dos Estados Unidos ainda amargavam esse furo da diplomacia francesa e culpavam a total ineficiência da embaixada americana em Moscou.
LÂMPADAS ACESAS – Foi Igor Andropov, o filho de 41 anos do líder soviético, que dera o sinal de alerta involuntário três dias antes, ao abandonar discretamente a Conferência de Desarmamento da Europa, atualmente em curso em Estocolmo, capital da Suécia, e rumar para Moscou. Na condição de segundo homem da delegação soviética à Conferência, somente motivos pessoais muito fortes o levariam a abandonar as sessões.
Para a população soviética, a notícia foi sendo desvendada em doses homeopáticas. Na noite de quinta-feira, com Andropov já morto às escondidas, os programas humorísticos da radio de Moscou foram cancelados.
Em seguida, a programação inteira das emissoras de radio e teve foi alterada, passando a transmitir essencialmente musica clássica. Ao longo da noite, todas as lâmpadas da gigantesca sede da KGB, na Praça DZERZHNISKY, permaneceram acesas. Ora, ora, Andropov vai cair morto se ouvir esses boatos, despistou com galhardia o veterano embaixador soviético em Washington. Anatoly Dobrymin, ao ser indagado sobre o significado destes sinais.
Três horas antes do anúncio fúnebre, a televisão estatal soviética só transmitia olimpicamente o exuberante desenrolar dos jogos de Inverno de Sarajevo, na lusgolávia, em que os atletas da URSS abocanhavam a sua tradicional coleção de medalhas de ouro. Por fim, minutos antes do comunicado oficial, a televisão passou a tocar Chopin, mostrando em close um piano de cauda Bechstein – mesma marca do piano de parede que andropov teve em seu apartamento na Avenida kutuzovsky, em Moscou.
TRAJA PRETA – A essa altura, por mais que soubessem que havia uma grande notícia no ar, os soviéticos ainda tinham dúvidas. Afinal, há sempre mais de um líder doente na cúpula geriátrica do Kremlin* e inicialmente correu o boato de quem morrera fora o marechal Dmitri Ustinov, de 75 anos, o poderoso ministro da Defesa, patrono do poder de Andropov e membro mais influente do Politburo. Ustinov esteve doente um tempo antes, e havia ocorrido o rumor de que sofrera um ataque cardíaco. Seu destino parecia o pior – até que surgiu nos vídeos o retrato retocado de Yuri Andropov, com uma tarja preta. O nome de Yuri Vladimirovich Andropov, dizia o comunicado fúnebre, destacado líder do Partido Comunista e do Estado Soviético, firme defensor dos ideais do comunismo e da paz, permanecerá nos corações do povo soviético e da totalidade da humanidade progressista.
Simultaneamente, na tarde cinzenta e nevosa daquele dia típico de inverno soviético, com temperaturas de 8 graus negativos, os moscovitas viram milhares de bandeiras vermelhas com tarjas pretas despontar nos edifícios da capital. Era um fim precoce de um mandato que deveria ter arrancado a União Soviética do imobilismo, mas que acabará entrando para a história soviética como um parêntese da sucessão de Leonid Brejnev. Nunca uma autoridade máxima do Kremlin exerceu sua influência durante tão pouco tempo: Lênin governou sete anos, Stalin reinou durante 29, Kruchev sacudiu a URSS por onze e Brejnev moldou o império ao longo de dezoito. Em comparação, os efêmeros quinze meses de governo de Andropov – metade dos quais ele permaneceu ausente, já consumido pelas somas de doenças que o matariam – parecem tão breves quanto os fugazes 33 dias em que o papa João Paulo I deixou sua marca sorridente no mundo. No caso de Andropov, a marca pessoal foi outra: seu estilo seco, frio e puritano foi quase ofensivo para a alma soviética, mais afeita a calor humano e a rasgos de grandiosidade.
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*Por ocasião da morte de Leonid Brejnev pensou-se que, na verdade, quem havia falecido foras Arvid Yanovich Pelshe, membro do Politburo que na época estava com 83 anos de idade.
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SEM CLIMA – Coma morte de Yuri Andropov e a temporária acefalia de comando no Kremlin, toda a complexa e intricada disputa de poder entre as duas superpotências entrou em efervescência e revisão imediatas. O presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, acordado de madrugada em seu rancho na Califórnia, decidiu não comparecer aos funerais de Andropov. Em seu lugar, deveria seguir o vice-presidente George Bush, que também representou os EUA no enterro de Leonid Brejnev, em novembro de 1982. Para Henri Kissinger, o mago na diplomacia americana nos tempos do presidente Richard Nixon, e que agora ensaia uma ambicionada volta ao cenário mundial, a decisão de Reagan é acertada. Acho que a ida do presidente à Moscou indicaria uma disposição imprópria para o estado das relações entre os dois países, disse Kissinger. Reagan não deve dar a impressão de que as dificuldades se limitam a um desentendimento entre dois líderes. Os problemas são muito mais sérios. Não são resultantes de diferenças de personalidades.
Na verdade, Reagan e Andropov nem sequer chegaram a se conhecer – jamais houve clima, tempo ou vontade mútua para um encontro de cúpula. Com a derrubada do Jumbo civil coreano por caças soviéticos e a instalação de armas nucleares táticas dos EUA na Europa, em novembro, as relações entre as duas superpotências chegaram a seu grau mais gélido do últimos anos. Até o momento, a posição de inflexível guerreiro anticomunista vinha servindo aos propósitos políticos de Ronald Reagan. Mas agora, lançado em plena campanha pela reeleição em novembro próximo, o presidente dos Estados Unidos pretende ampliar as suas bases de apoio nacional, desobstruindo um pouco os asfixiados canais do diálogo com o rival do número 1.
Segundo informações colhidas junto a seus assessores, Reagan autorizou seus emissários em Moscou a sugerirem uma reunião de cúpula dentro de dois ou três meses, possivelmente em abril.
Como a cada morte de um líder soviético, essa era a grande questão a desfiar a vaidade dos especialistas em assuntos soviéticos no mundo inteiro. Apropriadamente, o local onde despontou o primeiro favorito, instantes após o anuncio da morte de Andropov, foi uma celebrada casa de apostas londrina, a William Hill: deu Konstantin Chernenko (73anos) na cabeça, seguido de Mikhail Gorbachev (52) e Grigory Romanov (61 anos). No fundo, exceto para a liderança soviética que efetivamente participa da escolha, trata-se de um exercício de adivinhação.
VANTAGEM INICIAL – Teoricamente, o novo líder pode ser qualquer dos 300 membros do Comitê Central do Partido Comunista soviético. Na prática, porém, os membros que acumulam os postos do Politburo e da Secretaria do Comitê Central são os favoritos. Chernenko, Gorbachev e Romanov são justamente os únicos membros que somam os dois cargos, e por isso figuram em todas as listas. De resto, mais nada aproxima o primeiro dos outros dois. Na liturgia do poder que substitui as eleições ou qualquer outra manifestação da existência de instruções políticas democráticas no regime soviético, o corpulento Chernenko levava vantagem inicial. Fora ele quem ocupara o lugar reservado ao secretário-geral do PCUS, ausente pela doença, durante o desfile de aniversário da revolução soviética em novembro último. Foi ele, também, o escolhido para chefiar os 27 membros da Comissão de Exéquias no enterro de Andropov – honraria altamente cobiçada, considerando-se que, desde o tempo de Lênin, todos os chefes de exéquias acabaram se tornando, também, chefe do país.
A descrição mais generosa que os especialistas em assuntos soviéticos faziam de Chernenko, até recentemente, era a de um apparatchik medíocre, um carregador de pasta da resistente máfia dos de amigos de Leonid Brejnev. Sua carreira estaria condenada ao crepúsculo devido ao fator de idade – a União Soviética não aguentara mais um líder setuagenário, após a devastadora paralisia imposta ao país nos últimos da era Brejnev e ao longo de todo efêmero mandato Andropov. Além disso, supõe-se que a biografia oficial de Chernenko seja generosa demais nas qualificações. Embora apareça como alto executivo partidário, ele não tem experiência nem como administrador regional, nem na burocracia ministerial nem mesmo como gerente de fábrica.
Justamente devido à idade, Chernenko poderia aceitar funções cerimoniais – eventualmente na presidência do Soviete Supremo – exercendo um papel moderador na nova composição do poder soviético. Isso significa adiar mais uma vez, como ocorrera na substituição de Brejnev por Andropov, o momento de fazer uma sucessão duradoura. O objetivo seria evitar quaisquer mudanças maiores na política interna e externa da URSS nesta transição de gerações no poder. Em tal cenário era esperado que Chernenko dividisse suas responsabilidades com os dois últimos integrantes da velha guarda, Dmitri Ustinov e o veterano chanceler Andrei Gromyko.
Há um cenário oposto, o do salto geracional – capaz de iniciar, enfim, a modernização tantas vezes protelada de toda a colossal máquina do Estado soviético. Gorbachev e Romanov, aí, travam uma luta de gigantes. Um discurso pronunciado por Andropov em meados do ano passado, na presença de veteranos do partido, no Kremlin, começa a ser visto agora como parte de seu legado político. Naquela ocasião, Andropov havia feito a apologia das novas gerações, dizendo que elas não eram piores que as velhas – eram apenas diferentes. Segundo Andropov, toda nova geração avalia e conquista o mundo a seu modo, introduzindo métodos que serão adaptados às condições e situações do país. A nova geração sabe mais e vê mais longe do que a geração anterior, advertiu o velho líder na época.
ALAVANCA – Dos dois, Gorbachev, embora mais jovem, é que tem mais experiência e trânsito no mundo ocidental – à exceção do chanceler Gromyko, á atualmente o líder soviético que mais circula no exterior. Secretário encarregado dos assuntos de agricultura e da indústria leve – dois calcanhares-de-aquiles da economia soviética -, Gorbachev teve uma carreira meteórica nos últimos cinco anos, apesar das péssimas safras registradas na URSS ultimamente e do permanente desastre na sua produção de bens de consumo. Ele é, segundo o historiador soviético Zhoes Medvedev, a grande solução sucessória para a URSS. Gorbachev é educado, maduro e preparado para o cargo, diz Medvedev, que vive exilado na Inglaterra. Seu trunfo mais concreto, contudo, é o de ter sido o supervisor encarregado pelo Comitê Central de selecionar quadros para o Partido Comunista nas eleições realizadas entre novembro e janeiro últimos. Foi com essa mesma alavanca que Nikita Kruchev teceu as últimas malhas para ascender ao poder em 1954.
A ele se contrapõe Grigory Romanov, que tem a fatalidade de portar o nome da dinastia russa varrida pela Revolução Bolchevique. Trazido pelas mãos de Andropov de Leningrado para Moscou, Romanov era apontado pela CIA americana, já em 1979, como um possível ocupante do Kremlin. Ele também seria candidato lógico se prevalecessem as opiniões do Conselho de Defesa as União Soviética – organismo semelhante ao Conselho de Segurança Nacional brasileiro. Além de ser oito anos mais velho que Gorbachev, uma condição que tranquilizaria o núcleo de anciãos agarrados ao poder supremo na URSS, Romanos tem sólidas ligações com a poderosa indústria bélica do país e uma bem-sucedida experiência de liderança do partido na região de Leningrado, a segunda maior cidade Soviética. Rival de Moscou como centro de poder, Leningrado disparou nas estatísticas nos últimos anos, reunindo as setores mais dinâmicos da indústria na URSS.
Em contrapartida, o fato de vir de Leningrado lhe valeu uma legião de inimigos em Moscou, que não hesitam em divulgar ou inventar episódios constrangedores de sua vida particular. O mais célebre e conhecido deles é a festa de casamento de sua filha, que degenerou em ruidosa bebedeira, com vários convidados, encorajados pelo anfitrião, espatifando peças de um serviço de louça chinesa de valor incalculável que pertence à imperatriz Catarina, a Grande, e que Romanov simplesmente confiscara do Museu Hermitage, o mais rico da URSS, para a ocasião. Além disso, a escassa familiaridade de Romanov com as nuanças da política internacional o tornou um nome indigesto para a maioria das chancelarias do Ocidente. O curso de polimento tentado ultimamente por Andropov não deu resultados imediatos. Durante uma viagem à Alemanha Ocidental, para participar do congresso do PC local, Romanov fez um ruidoso e inconveniente discurso antiamericano. A um grupo de senadores dos Estados Unidos que visitavam a URSS perguntou por que ele não disciplinavam a oposição no Senado dos EUA, que impedia a aprovação do acordo Salt II.
Se Yuri Andropov efetivamente tiver conseguido emplacar este salto de poder na URSS, a História se debruçará sobre sua angulosa figura com mais respeito. Mesmo que a sucessão de um dos dois jovens não se faça imediatamente – afinal, como diz Zbigniew Brzezinski, ex-assessor para Assuntos de Segurança Nacional dos EUA, uma sucessão em Moscou nunca se faz em um lance, mas sim em dois. Dificilmente, porém, um historiador conseguirá transpor os maciços muros de reserva e privacidade que envolveram os 69 anos de vida desse especialista em retaguardas. Apesar de ter comandado durante quinze anos um dos mais poderosos sustentáculos do regime soviético – a KGB, a polícia que comanda vastos setores da vida na URSS -, Andropov chegou ao poder sem que mais de lideres soviéticos conhecessem o seu rosto.
Na primeira oportunidade, e de uma penada só, ele dinamitou a minguada biografia de clichês que a imprensa ocidental havia composto para ele. Numa memorável entrevista ao seminário alemão Der Spiegel, Yuri Andropov destruiu o que todos recitavam dele – não, ele não gostava de jazz, nem de uísque , nem de conhaque francês nem de pintura abstrata. Na verdade, seu compositor favorito era o soviético Alexander Scriabin, autor de épicas marchas patrióticas. As poucas personalidades que tiveram ocasião de dialogar com Andropov têm lembranças distintas de seu caráter.
Para o vice-presidente americano George Bush, Andropov era homem de senso e humor. Temos uma coisinha em comum de nosso passado, dissera-lhe Bush por ocasião do enterro de Brejnev, referindo-se ao papel de chefe do serviço de espionagem de seus países, que os dois haviam ocupado. O senhor tem razão, somos ambos homens de paz, respondeu Andropov sem hesitar. O senhor alguma vez já leu as transcrições das discussões entre Shultz e Gromyko? Eles são homens de guerra. Para o chanceler francês Claude Cheysson, que se entrevistou com o líder soviético em fevereiro de 83, Andropov era um homem frio, preciso, cortês e com raciocínio do tipo matemático. Para a colegial americana Samantha Smith, de 11 anos, Andropov foi o russo que respondeu a uma carta sua na qual indagava se Moscou queria acabar com o perigo nuclear, convidando-a a visitar a União Soviética.
Ironicamente, a parte mais íntima de sua vida, aquela que ele conseguiu manter secreta até o final, acabará sendo revelada no dia de seu funeral: se existe ou não uma senhora Andropov. Pelo que se sabe, sua primeira mulher, Tanya, morreu, mas não se tem notícia de um novo casamento. Até esmo o número de filhos seus é uma questão polêmica – além de Igor e de sua filha de Irina, de 38 anos, casada com um ator de teatro de vanguarda, Andropov tem dois netos que jamais foram mostrados ao público.
CARGO PERIGOSO – Para a grande maioria dos soviéticos, contudo, essas questões são totalmente irrelevantes. O que permanece, na imagem de Andropov, o homem que comandou a KGB. Trata-se de um cargo perigoso, também para quem o ocupa. A exceção do fundador da organização, Felix Dzerzhinsky, que morreu de tuberculose, todos o chefes da KGB saíram do cargo executados ou pelo menos em desgraça. Até ser ocupado por Andropov, tratava-se de um posto que não servia de escada ao poder supremo. Mas ele queria chegar ao topo e não tinha alternativa, uma vez que sua experiência internacional – fora embaixador da URSS na Hungria de 1954 a 1957 – só lhe serviria para ascender ao lugar do velho Mikhail Suslov morreu, em 1980, Andropov já havia batido o recorde de permanência no comando da KGB e adquirido prestígio e força suficientes para liderar o Kremlin.
Durante esse período, Andropov tomou a KGB mais eficiente. Em vez de vigiar exclusivamente os dissidentes políticos, os judeus e outros tipos oposicionalistas ao regime, ele tratou de usar os gigantescos tentáculos da organização para atacar a corrupção do próprio governo, os altos funcionários do partido. Em 1969, por exemplo, Andropov conseguiu que todos os membros do Presidium do partido e do governo da República do Azerbaidjan fossem demitidos por corrupção de uma só vez. Ao mesmo tempo, durante o seu reinado, a Kgb passou a preparar melhor os processos contra dissidentes, a infiltrar suas fileiras e a usar técnicas mais modernas de espionagem. Sobretudo, passou a deportar os líderes da oposição, estimulando-os a abandonar o país para depois priva-los da cidadania soviética.
Mais do que tudo, porém, Yuri Andropov tentou preparar a sua própria sucessão. Na opinião do historiador soviético Alexander Yanov, atualmente professor da Universidade de Califórnia e autor do livro Origens da Autocracia, nos últimos cinco séculos os russos só tiveram cerca de meia dúzia de líderes de intelecto excepcional – e um deles seria Andropov. O problema é que não basta inteligência para mudar um país de 270 milhões de habitantes, que também é a segunda maior ditadura do mundo de hoje. É necessário, além de capacidade intelectual, impor a liderança e obter o apoio da elite do país. Para isso, Andropov batalhou até o fim.
Já doente e governando de seu apartamento, em Moscou, ele mudou nos últimos dois meses um em cada cinco primeiros-secretários dos partidos das províncias. Segundo Robert Gillette, o correspondente do Los Angeles Times em Moscou, que compilou num quadro todas as mudanças noticiada pela imprensa oficial soviética, 24 dos 156 primeiros-secretários dos oblast (distritos administrativos) foram tocados. Juntando-se este número aos oito que foram substituídos no ano passado, chega-se a um total de mais de 20%de exonerados. Trata-se da maior mudança de chefes de província das duas últimas décadas. Além deles, foram substituídos dezenove ministros (de um total de 84), e levas inteiras de quadros intermediários , atingindo seletivamente os líderes julgados incompetentes ou envolvidos em atos de corrupção.
LINHA DURA – O expurgo de Andropov produziu algumas cifras encorajadoras . Nos primeiros nove meses de 1983, a produção industrial subiu em 4,1%, virtualmente dobrando a taxa de crescimento do ano anterior. Mas terá sido apenas um espasmo: não há campanha disciplinar que resolva os problemas de fundo do modelo econômico soviético. Como aponta o renomado sovietólogo americano Adam Ulam, da Universidade de Harvard, não existem divisões de Politburo entre adeptos da linha dura e moderados no que se refere à política externa: na hora do confronto, são todos linha dura. Mas em política interna, há os que arriscam e os que não arriscam. Andropov arriscou – e não conseguiu a reforma que pretendia. Tendo como adversário a saúde, a falta de tempo e o estilo pouco vigoroso, Yuri Andropov deixou uma marca superficial nos imensos problemas da sociedade soviética. O curso, porém, estava certo, e para segui-lo Andropov contava com todo o apoio do sustentáculo militar do país.
Ao longo de todos estes anos de perigoso vazio na pirâmide do poder soviético – que começou com a longa doença de Brejnev e se arrastou através do mandato de Andropov – os militares despontaram como os guardiões da estabilidade na URSS. Pela primeira vez em 66 anos de história do regime comunista, eles estiveram no centro de todas as grandes questões nacionais – seja no episódio da derrubada do avião coreano, seja na crucial resposta da URSS à instalação de mísseis americanos na Europa.
Falando em nome da nação, o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas da URSS, o articulado marechal Nikolai Ogarkov, de 66 anos, de entrevistas traçou planos, decidiu estratégias, denotando a falta de uma segura liderança política nos momentos de crise. Este vácuo, perigoso para uma superpotência resulta num risco quase igual para a outra, e ao longo de toda a doença de Andropov do Kremlin, o secretário de Estado americano George Shultz achou útil afirmar com autoridade que Yuri Andropov está novamente no comando – mesmo sabendo que a realidade era outra. Neste sentido, a morte do líder soviético soou como um alívio em Washington. Dela resulta a perspectiva de que haverá, agora, alguém com quem competir.
Andropov, morreu no dia 9 de fevereiro de 1984, aos 69 anos de idade, na clínica Kremlinovka, nos arredores de Moscou.
(FONTE: Veja – Edição Nº 806 INTERNACIONAL Pág; 28 – 15/02/1984 DATAS – Pág; 84)
Yuri Andropov, secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética.
Andropov teve a última aparição pública em 18 de agosto de 1983.
Os principais candidatos à sucessão são Konstantin Chernenko, Grigory Romanov e Mikhail Gorbachev.
Yuri Andropov morreu 454 dias após ser eleito secretário-geral, foi vítima de insuficiência renal.
(Fonte: Zero Hora – ANO 50 – N° 17.655 – HÁ 30 ANOS EM ZH – 11 de fevereiro de 1984 – Pág: 47)