“Quando se mata uma travesti, ninguém chora”, diz líder trans
João W. Nery é símbolo da luta pelos direitos dos transexuais no Brasil.
Em 1977, tornou-se a primeira brasileira a fazer uma cirurgia de mudança de sexo (ou redesignação sexual, no jargão técnico), quando a prática era ainda clandestina e considerada crime, podendo levar à prisão tanto do médico quanto do paciente. Tornou-se, portanto, o primeiro trans-homem do país.
A mudança pioneira do sexo e do nome rendeu-lhe uma sequência de complicações e uma vida marginal. Com o nome que abandonou, ficou para trás também o diploma de psicólogo e todos os demais comprovantes de uma vida regular – experiências que foram narradas em dois livros: “Erro de Pessoa: João ou Joana?’ (Record, 1984) e “Viagem Solitária – Memórias de um Transexual Trinta Anos Depois” (Leya, 2011).
João W. Nery vem de uma junção do “nome mais simples, popular e fácil de guardar”, com o “W de Walter” e “o Nery do sobrenome de uma amiga, negra e ativista, que quis homenagear”. Daí sairá também o nome do projeto de lei que trata da identidade de gênero.
O texto, de autoria dos deputados Jean Wyllys (PSOL-RJ) e Érika Kokay (PT-DF), visa dar respaldo legal à identidade de gênero, reconhecendo-a como um direito. Hoje não há lei específica para o tema.
Prevê, entre outros pontos, que a pessoa tem direito “a ser tratada de acordo com sua identidade de gênero e, em particular, a ser identificada dessa maneira nos instrumentos que acreditem sua identidade pessoal a respeito do/s prenome/s, da imagem e do sexo com que é registrada neles”.
Entretanto, o projeto de lei enfrenta dificuldade para avançar no Congresso. Apresentado no plenário da Câmara dos Deputados no dia 20 de fevereiro de 2013, até agora só foi apreciado pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias.
Em maio deste ano, o texto foi aprovado pelo relator, que apenas pediu a exclusão do artigo que tratava de questões trans envolvendo menores de 18 anos. Segundo a emenda do relator, crianças e adolescentes não poderão pleitear a mudança de nome, de sexo e da imagem em documentos oficiais se a lei entrar em vigor.
O projeto de lei ainda precisa ser apreciado em outras três comissões da Câmara, antes de ir à votação do plenário. Não há prazo para que isso aconteça.
“Com esse Congresso do jeito que está, não passa nada de direitos humanos. Vai ser osso duro”, afirma João, ressaltando que a situação dos trans e travestis no Brasil é alarmante: “Nem humanos somos, porque, quando se mata uma travesti, ninguém chora, acha até um alívio”. Para ele, a aprovação da lei é “importantíssima, vai nos dar a cidadania que não temos”.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Primeiro homem trans
Eu sou o primeiro homem trans operado no Brasil. Isso foi em 1977, durante a ditadura militar [1964-1985], quando as cirurgias ainda eram proibidas e consideradas mutilação do ser humano [João fez, à época, mamoplastia masculinizadora, que é a conversão das mamas femininas em mamas masculinas, e histerectomia total, remoção do útero]. Era crime se operar, tanto para o paciente quanto para o médico. Meu médico foi condenado a dois anos de prisão, não por minha causa, mas porque operou uma mulher trans em 1971 [o cirurgião plástico Roberto Farina, em 1971, transformou Waldir Nogueira em Waldirene. Acabou condenado a dois anos de reclusão em 1978, acusado de “lesões corporais graves”, e depois foi absolvido].
Aos 26 anos, descobri uma equipe pioneira aqui no Rio que começava a estudar o transexualismo –e esse “ismo” do termo quer dizer doença ainda. Me submeti a todos os testes e acabei fazendo essa cirurgia por baixo dos panos, proibida.
Então fui a um cartório com uma amiga trans, que foi minha testemunha, e tirei uma nova certidão de nascimento com nome masculino para poder trabalhar e sobreviver. Acontece que, mesmo depois que me operei, não podia entrar na Justiça, porque nenhum juiz me daria essa mudança [de nome e de sexo]. E aí cometo o meu segundo crime, porque não fiz uma mudança de nome, eu simplesmente tirei outro nome. Fiquei com dois CPFs, um de mulher e outro de homem.
Com esse nome masculino, perdi todo o meu currículo escolar e passei a ser um analfabeto [do ponto de vista formal]. Não podia mais exercer minha profissão [de psicólogo]e fui ser pedreiro, pintor de parede, chofer de táxi, cortador de confecção, massagista de shiatsu. Passei 30 anos dentro do armário, porque de outra forma seria preso, exercendo trabalhos que não eram compatíveis com a minha condição. Resumindo a história: estou desempregado até hoje e sem aposentadoria.
Nome ‘de fantasia’
A mudança de nome para o trans é decisiva. Porque, com um nome na carteira de identidade que não te representa, você não é cidadão. Nunca pode apresentar o seu nome de registro porque não corresponde à sua imagem, nem ao que você é. Então, você é acusado muitas vezes de falsidade ideológica, quando mostra a própria identidade.
O nome social é um nome de fantasia, um nome, digamos, gambiarra, porque não é um nome legal. Não se pode votar com o nome social. Assim mesmo, para evitar alguns constrangimentos, o nome social às vezes é respeitado, mas muitas vezes não é, nem mesmo dentro do SUS [Sistema Único de Saúde], das escolas. É preciso que haja realmente uma mudança de identidade do prenome, porque o sobrenome não muda.
Esse projeto de lei prevê que trans possam ir a um cartório e mudar o seu prenome e o seu gênero sem precisar de cirurgia, nem hormonização nem laudo psiquiátrico. Porque nós somos considerados doentes mentais até hoje. A homossexualidade deixou de ser doença nos Estados Unidos na década de 1970, mas a transexualidade continua como uma doença mental. Com essa patologização, a gente não tem autonomia nem sobre a própria identidade. Não adianta eu dizer que sou trans no SUS, pois quem tem de dizer quem eu sou é um psiquiatra ou um psicólogo. Com laudo para isso. Eu não posso mexer no meu corpo sem essa autorização.
Os trans ficam presos à medicina e à Justiça. Mesmo depois que se opera, não é automaticamente que se muda de nome. É preciso entrar na Justiça com um processo, ou pela Defensoria Pública, mas tem que se submeter a um juiz que você não sabe qual será, e a maioria dos juízes é transfóbica. Os juízes, em geral, são preconceituosos, cheios de estereótipos e podem inclusive mudar o seu nome, mas não mudar o seu gênero. Olha a loucura. Os trans continuam sendo constrangidos do mesmo jeito. Por isso, a lei é fundamental. Esse projeto é baseado na lei argentina de identidade de gênero, que vigora desde 2012 e é um sucesso até hoje lá.
Espero que, com a novela da [dramaturga]Glória Perez, em abril, sobre homens trans, possa haver uma abertura maior da sociedade também. A novela foi calcada no meu livro “Viagem Solitária”, que tem ajudado inclusive a salvar vidas. [“À Flor da Pele”, da Globo, terá uma personagem trans-homem.]
‘Censo trans’
Depois da repercussão do meu livro [“Viagem Solitária”], me tornei obrigatoriamente um ativista dos direitos humanos, não só dos direitos LGBTT [Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais], porque a minha luta é contra o racismo e contra qualquer forma de discriminação. Me tornei um ícone dentro do movimento transmasculino e hoje faço o Censo dos homens trans no Brasil.
Claro que é parcial, é por meio do Facebook, com quem se autodeclara para mim. Tenho catalogado mais ou menos 3.000 homens trans. É parcial, mas já é um dado, porque não existe nenhuma estatística trans no Brasil, nem de homens nem de mulheres. O SUS não fornece o número de operados, nem todos os trans querem ser operados. E existem também os trans que a gente chama de não binários, que são aqueles que não se identificam nem com homem nem com mulher ou se identificam com os dois. Enfim, são vários gêneros. Por exemplo, Nova York reconheceu agora 31 gêneros diferentes.
Nossa sociedade é binarista, sexista, machista e só considera que existem homem ou mulher. E isso é uma invenção
João W. Nery, ativista trans
Por exemplo, não sou um homem, sou um homem trans, um trans-homem, é diferente. Não sou um homem de gênero, sou transgênero. Meu gênero não está de acordo com o meu corpo e isso me faz ter um corpo político, inclusive para poder mostrar a essa sociedade que a concepção de homem e mulher é uma concepção social. Há toda uma gama de pessoas que saem desses parâmetros.
As pessoas são múltiplas e plurais. Até a masculinidade é no plural: masculinidades. E elas são hierarquizadas. Se for um homem branco, jovem, sarado, rico e culto, está lá em cima na pirâmide. Mas, se for negro e pobre, já se tem uma masculinidade inferiorizada. Isso acontece também com as feminilidades. E tanto as masculinidades quanto as feminilidades são invenções sociais, que mudam de cultura para cultura, de tempos em tempos.
Aliás, “gênero e sexualidade” deveria ser uma cadeira obrigatória pelo menos em universidades de humanas –e não é. Só tem cinco universidades em todo o Brasil com essa cadeira como obrigatória. Então hoje se formam psicólogos, enfermeiros, médicos etc. que não sabem a diferença entre gênero e sexo. É uma calamidade.
Marginalidade e violência
Ninguém dá hoje trabalho para trans. Somos considerados uma categoria abominável, abjeta.
Nem humanos somos, porque, quando se mata uma travesti, ninguém chora, acha até um alívio
João W. Nery, ativista trans
Matar é uma assepsia para a sociedade. A lei é importantíssima porque vai nos dar a cidadania que não temos. Pagamos impostos, mas não somos cidadãos porque não temos um nome que nos represente. Essa lei [sobre direitos trans]é fundamental para que haja dignidade e respeito com os transexuais.
Mas, com esse Congresso do jeito que está, não passa nada de direitos humanos. Vai ser osso passar, mas tenho fé. O Brasil é hoje o país que mais mata LGBTT no mundo [segundo levantamento diário do blog “Homofobia Mata”, até dezembro de 2016, mais de 300 pessoas LGBTT já foram assassinadas no país]. Mata-se todo dia um LGBTT. A homofobia e a transfobia são coisas muito sérias no Brasil.
(Fonte:http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2016/12/16 – notícias Cotidiano – EQUILÍBRIO/
Guilherme Azevedo
Do UOL, em São Paulo