Foi o primeiro cientista a perceber que, para salvar a humanidade da fome, era imperativo conservar a biodiversidade genética das plantas cultiváveis do mundo inteiro em “bancos de sementes”

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Nikolai Vavilov: o primeiro guardião da biodiversidade vegetal

Nikolai Vavilov World Telegram staff photographer/Library of Congress/New York World-Telegram & Sun Collection

 

 

Nikolai Vavilov: o primeiro guardião da biodiversidade vegetal

É pouco conhecido do grande público. Mas foi o primeiro cientista a perceber que, para salvar a humanidade da fome, era imperativo conservar a biodiversidade genética das plantas cultiváveis do mundo inteiro em “bancos de sementes”. Ironicamente, morreu de fome na prisão durante o estalinismo.

Todos (ou quase) terão ouvido falar, nos media, do grande Cofre-Forte de Sementes Global de Svalbard, uma espécie de congelador gigante, de aspecto futurista, construído numa zona montanhosa do Ártico. Inaugurado em 2008, tem como objetivo proteger o maior número de espécies cultiváveis úteis do mundo – como feijões, arroz ou trigo –, contra as piores calamidades que possam acontecer, de forma a preservar o sustento alimentar da humanidade. Mas o que quase ninguém sabe é que essa ideia de preservação da biodiversidade agrícola nasceu há um século na cabeça de um cientista russo.

Foi precisamente em 1916 que Nikolai Vavilov, biólogo, geneticista, geógrafo, agrónomo e especialista do melhoramento das espécies vegetais partiu para a Pérsia (atual Irão) na sua primeira expedição, para recolher sementes cultivadas em regiões mais e menos “exóticas”. Essa sua atividade intensa de exploração dos quatro cantos do globo continuaria ao longo da sua vida e conduziria à criação, já em 1924 em São Petersburgo (então Leningrado), do primeiro banco de sementes do mundo.

Colecionador de plantas

Nikolai Vavilov nasceu em Moscou a 25 de novembro de 1887. O seu pai era um “próspero homem de negócios tornado milionário”, lê-se numa recensão de 1994, na revista Nature, da primeira da tradução em inglês (publicada em 1992) dos mais importantes trabalhos de Vavilov, coligidos sob o título de Origin and Geography of Cultivated Plants. Depois de acabar o curso no Instituto de Agricultura de Moscou, Vavilov passou quase um ano, entre 1913 e 1914, no Reino Unido, no laboratório de William Bateson, pioneiro da genética moderna – e que cunhara aliás a palavra “genética” em 1901.

Quando estalou a Primeira Guerra Mundial, Vavilov regressou a Moscou e, na Universidade de Saratov, (cidade situada a uns 700 quilómetros a sudeste de Moscou, nas margens do rio Volga) começou a fazer investigações sobre a resistência das plantas às doenças, lê-se ainda na Nature, “virando-se depois para o estudo dos parentes selvagens das plantas cultivadas e formulando a ideia de que todas as plantas domesticadas tinham surgido em áreas de atividade humana na pré-história”. E foi para demonstrar esta hipótese que Vavilov organizou expedições “para sítios onde supostamente tinham assentado as povoações humanas mais antigas”. Identificou assim, primeiro cinco “centros de origem” das plantas cultiváveis. Mais tarde, esse número aumentou para sete ou oito (segundo as fontes).

A paixão de Vavilov pelas plantas vinha de longe. “Vavilov começou a colecionar plantas durante a infância: tinha um pequeno herbário em casa”, escrevia em 1991 Barry Mendel Cohen (que fizera a sua tese de doutoramento sobre o cientista) num texto publicado na revista Economic Botany.

Visitou mais de 64 países e aprendeu 15 línguas para conseguir falar directamente com os agricultores. “Foi um dos primeiros cientistas a ouvir realmente os agricultores tradicionais, a gente do campo de todo o mundo, para saber por que é que achavam que a diversidade das sementes era importante nos seus campos ”, declarou em 2010, numa entrevista à rádio pública norte-americana, o ecologista e botânico Gary Paul Nabham, autor de uma biografia de Vavilov.

Depois da Pérsia, sempre a recolher espécies locais, Vavilov fez várias viagens aos Montes Pamir da Ásia Central; atravessou territórios nunca antes explorados do Afeganistão; percorreu países da zona mediterrânica, europeus (incluindo Portugal) e não só. No Sul da Síria, contraiu malária. Esteve na Palestina e, em África, foi até à Abissínia (na actual Etiópia), onde apanhou tifo. Também organizou expedições à China, Japão, Coreia, Taiwan, América do Norte, Central e do Sul.

Diga-se ainda que, em 1921, foi convidado a assistir, com outro colega russo, ao Congresso Americano de Patologista dos Cereais – “um convite de histórica importância”, diz Cohen, “na medida em que foi o primeiro exemplo de cooperação científica entre os Estados Unidos e a recém-criada União Soviética”. O convite também mostra que o trabalho de Vavilov já era, naquela altura, reconhecido fora da Rússia.

Lisenko, inimigo mortal

A partir de 1920 e durante 20 anos, Vavilov dirigiu a Academia Lenine de Ciências Agrícolas da União (mais tarde rebatizada Instituto Vavilov da Indústria Vegetal da União em sua honra), com sede em Leningrado. Criou 400 estações experimentais, espalhadas por toda a União Soviética e onde trabalhavam cerca de 20.000 pessoas. Publicou centenas de artigos de genética, biologia, geografia e seleção vegetal.

Como explicava Soyfer em 1989, num outro artigo na Nature, hoje ninguém duvida que as atividades de Lisenko tenham contribuído para a destruição das ciências agrícolas, biológicas e até médicas na União Soviética.

Porém, no início da sua ascensão, Lisenko conseguiu uma aparente vitória contra a fome que alastrava na URSS devido à coletivização forçada da terra. E em 1929, anunciou que uma técnica da sua invenção, dita de “invernalização”, iria permitir fazer florescer em pleno inverno o trigo que normalmente só desabrochava na Primavera. O método não foi validado e acabou por não cumprir as promessas de Lisenko de aumento da produção. Mas ele não estava disposto a arcar com a responsabilidade do falhanço e o culpado escolhido seria Vavilov, o homem que tanto contribuíra para o celebrizar. Lisenko tinha-se tornado o seu inimigo mortal.

Assim, após o seu regresso do México, em 1933, Vavilov foi proibido de empreender novas viagens. E a partir de 1934, Lisenko fez dele “o bode expiatório pelas desastrosas políticas agrícolas de Stalin”, lia-se na revista Science em 2008.

Quando Vavilov percebeu o que estava a acontecer, começou a criticar a “ciência” de Lisenko, numa controvérsia que culminaria com a “vitória” do pseudo-cientista Lisenko – e com uma tragédia: a detenção de Vavilov a 6 de Agosto de 1940 pela polícia secreta soviética.

Vavilov morreu de fome em Saratov a 26 de Janeiro de 1943, aos 55 anos de idade. Nem a própria mulher, que voltara a residir em Saratov, sabia que o marido estava ali tão perto.

Vavilov só seria parcialmente reabilitado – e Lisenko definitivamente desacreditado – em 1965 pelo então presidente da URSS Leonid Brejnev, sob a pressão de dissidentes russos como o físico Andrei Sakharov e o escritor Alexandre Soljenitsyne, explica ainda Barry Mendel Cohen.

A ausência de Vavilov não passou despercebida a nível internacional. O próprio Winston Churchill fez vários apelos a Estaline para saber o que tinha acontecido a Vavilov. E, numa carta publicada na revista Science a 21 de Dezembro de 1945, Karl Sax, da Universidade de Harvard (EUA), perguntava: “Onde está Vavilov, um dos maiores cientistas da Rússia e um dos maiores geneticistas do mundo? Vavilov fora eleito presidente do Congresso Internacional de Genética, que decorreu em Edimburgo em 1939, mas não apareceu e desde então não temos tido notícias dele. Recebemos agora a informação da nossa Academia Nacional das Ciências de que Vavilov morreu. Como morreu e porquê?”

(Créditos autorais: https://www.publico.pt/2016/03/30/ciencia/noticia – CIÊNCIA/ NOTÍCIA/ HISTÓRIA/ por Ana Gerschenfeld – 30 de Março de 2016)

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