HERÓI NACIONAL, PARA SEMPRE
O HERÓI DO FIM DA ESCRAVIDÃO
Joaquim Nabuco (Recife, 19 de agosto de 1849 – Washington, 17 de janeiro de 1910), estadista, historiador, diplomata e sedutor. E, acima de tudo, o homem que encabeçou a mais justa de todas as causas: a batalha da opinião pública que terminou por convencer a sociedade brasileira a se mobilizar para acabar com a escravidão.
Num domingo, dia 13, a princesa Isabel desceu a serra. Vinha de Petrópolis e ia para um lugar de honra na história. Com os olhinhos azuis iguais aos do pai, contemplou a multidão tomada de enorme comoção que estava na frente do palácio imperial, no centro do Rio. Usava um vestido de seda marfim, enfeitado com rendas francesas, e assinou com mão firme as palavras de explosiva simplicidade escritas no documento à sua frente: “É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil”. Para quem olha o passado com displicência retroativa, a história termina aí: transformações econômicas e políticas empurraram um regime falido a aceitar a libertação da massa vilmente explorada, com a participação de um ou outro representante da elite esclarecida. Mas afastemos um pouquinho a cortina alegórica que cerca o 13 de maio de 1888. Assinada a lei, Isabel voltou-se para o homem alto e elegante que estava a seu lado naquele momento emocionante. “Estamos reconciliados?”, perguntou. Como perfeito cavalheiro que era, Joaquim Nabuco acedeu e beijou a mão da princesa. Depois assomou à janela, para saborear o momento de glória e a adulação da massa. Aquele dia era dele, mais do que de qualquer um.
Não existe a mínima prova histórica, ainda mais no caso de uma princesa carola e apaixonada pelo marido, mas não é impossível imaginar pelo menos uma pontinha de flerte na pergunta de Isabel. As mulheres não resistiam a Nabuco. Aliás, os homens também não. No campo das ideias e da camaradagem viril, evidentemente. Joaquim Nabuco, que ressurge das brumas históricas ainda que fugazmente, em virtude do centenário de sua morte, neste dia 17, foi um personagem tão monumental que tudo em torno de sua extraordinária vida parece ser exagerado. Desvendada, a névoa do mito se revela, no entanto, tecida de verdade. Candidato a maior estadista da história nacional, embora no papel nunca tenha sido mais do que um simples deputado, Nabuco tem um título incontestável: foi o mais importante, o mais eloquente e o mais popular dos abolicionistas. Protagonizou o movimento pelo abolicionismo e, ao mesmo tempo, refletiu sobre a história que se desenrolava à sua volta, captando com a força de um intelecto preciso como laser a importância orgânica da escravidão na sociedade brasileira. No processo, como definiu o grande historiador Evaldo Cabral de Mello, escreveu “a mais brilhante análise do papel desempenhado pela escravidão na formação social e política do Brasil”.
PAIXÃO NACIONAL
O Brasil abraçou a causa abolicionista e seu mais conhecido defensor, Nabuco, que ganhou aura de ídolo pop: celebrado nas embalagens de cigarro, nas caricaturas e até no rótulo de cerveja
“Absorvia-a no leite preto que me amamentou; ela envolveu-me como uma carícia muda toda a minha infância”, escreveu ele sobre a escravidão que conheceu como menino, num engenho pernambucano. “Por felicidade da minha hora, eu trazia da infância e da adolescência o interesse, a compaixão, o sentimento pelo escravo – o bolbo que devia dar a única flor da minha carreira.” Não há quem não se arrepie ao ler como o jovem Nabuco descobriu que a tepidez do que parecia a ordem natural das coisas, de menino mimado pelas mucamas, era na verdade brutal e amarga. Era menino ainda, estava sentado no patamar da escada superior da casa onde havia sido criado pela madrinha, quando surgiu um jovem de corpo castigado. Lançando-se a seus pés, o escravo pediu que fosse comprado, salvando-o assim do senhor que o supliciava. “Foi este o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição, com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava”, descreveu Nabuco. Nasceram ali as sementes que o levaram a, mais tarde, autodesignar-se representante do “mandato do escravo”, explicado com palavras de impressionante contemporaneidade: “Delegação inconsciente da parte dos que a fazem, interpretada pelos que a aceitam como um mandato a que não se pode renunciar”.
À luz da história no que tem de mais estéril – a entediante versão mil vezes repetida do 13 de maio e seus antecedentes -, é difícil reproduzir a força avassaladora que o movimento contra a escravidão despertou em todo o país. O que o Brasil teve de pior – o comércio, a servidão, a exploração e a indizível violência mil vezes cometida contra seres humanos – gerou o que o Brasil de melhor conseguiu oferecer, sob a forma da luta abolicionista. Foi uma história de homens tomados de paixão por uma causa justa e, entre eles, nenhum mais apaixonado do que o jovem pernambucano de família ilustre, pai, avô e bisavô senadores do Império, com muito berço e quase nenhum dinheiro, que se tornou o que de mais parecido poderia existir no século XIX com uma celebridade ao estilo contemporâneo, aclamado, paparicado e adorado.
Nabuco pensava como um gigante histórico, polemizava como um estivador e jogava para a plateia como um ídolo pop. Travada, em grande parte, no centro da vida intelectual da época – os teatros -, a campanha abolicionista forneceu o palco ideal a um Nabuco simultaneamente confiante, arrojado, pedante, metido. Ou, na definição da cientista social Angela Alonso, autora da ótima biografia Joaquim Nabuco, um “enamorado de si mesmo”, impelido ao fulcro do cenário nacional tanto pelo imperativo moral quanto pelo desejo de aplausos e aprovação – que artista não se identificaria com ele? Entre os muitos palcos, nenhum foi mais consagrador do que o do Teatro de Santa Isabel, no Recife natal, onde as mulheres faziam fila nos camarotes especiais, suspiravam, lançavam pétalas de rosas e lencinhos com seu rosto pintado. No ápice da campanha e da popularidade, também se tornou marca de cigarros (Nabuquistas e Príncipes da Liberdade), de cerveja (Salvator Bier) e até de um modelo de chapéu (O Abolicionista, com um retrato dele). Pois, ainda por cima, o herói da causa era bonito. “Branco alvíssimo”, numa descrição da época, media 1,86 metro e tinha olhos de mormaço, como a Capitu que ainda haveria de nascer da cabeça de seu amigo Machado de Assis. Correspondia, em tudo, até no bigodão, uma novidade em relação às barbas da época, ao apelido de Quincas, o Belo. Nos retratos e fotos, aparece sempre de mãos à cintura ou com dois dedos no bolso do colete ou em alguma outra pose que gritasse: sou o dono do mundo. Era assumidamente metrossexual, ou, como se dizia no século XIX, um dândi, o tipo masculino preocupado com a aparência e sensível a modismos. Usava robe de seda japonesa, malas Louis Vuitton e senso de humor. “Riem e se cutucam quando entro na Câmara, culpa do meu terno de casimira clara, do sapato inglês e do chapéu de palha”, escreveu a seu eterno e complicado amor, Eufrásia Teixeira Leite. “Só para provocar usei outro dia a pulseira de ouro. Aquela que me deste.” A joia já havia dado o que falar. Numa das campanhas eleitorais (ganhava, perdia, ganhava, perdia), os adversários o apelidaram, maldosamente, de “candidato da pulseira”.
Quem o julgasse apenas pela aparência polida incorreria em grave erro. Nabuco sabia bater. No calor da campanha abolicionista, que inflamava o país inteiro mas esbarrava na resistência composta de boa parte dos políticos (tanto liberais quanto conservadores) e dos fazendeiros do oeste paulista, do Vale do Paraíba e da zona cafeeira de Minas, escreveu que o Brasil estava dividido em duas falanges: “A pirataria e a civilização”. Tinha, também, seu lado Tancredi, o personagem do Gattopardo de Lampedusa (e do filme de Visconti), e sua excessivamente usada frase sobre as mudanças necessárias para não mudar a ordem essencial das coisas. Cheio, portanto, de contradições, sofria períodos de depressão, pensou em emigrar para a Austrália ou a Nova Zelândia, vivia dividido entre o Brasil e a Europa. “De um lado do mar sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país”, escreveu. Enfim, a complexidade e os questionamentos que se esperam dos intelectos superiores. Foi um monarquista esclarecido que escreveu contra Pedro II o panfletário O Erro do Imperador (daí a frase de Isabel no dia da abolição), um interessado na “política que é história” que conheceu o que a outra política tem de pior, um deputado que entrou para a Câmara “tão inteiramente sob a influência do liberalismo inglês como se militasse às ordens de Gladstone” e que acabou incluído em artigo do Times de Londres na turma de “comunistas” que usavam o abolicionismo radical para subverter a ordem.
Devido à multiplicidade e à riqueza tanto de sua personalidade quanto de sua obra política, até hoje é possível beber na fonte nabuquista a partir de diferentes perspectivas. Como em todas as grandes obras, cada um encontra em Nabuco o que procura – ou, melhor ainda, o que nem sabia existir. À esquerda, causa simpatia sua defesa da nacionalização das terras para uma reforma agrária que acabasse com a miséria provocada, em especial no Nordeste, pelo sistema de grandes propriedades, “fazendas ou engenhos isolados, com uma fábrica de escravos, com os moradores das terras na posição de agregados do estabelecimento, de camaradas ou capangas”. Mas é difícil competir com sua análise da “superstição do estado-providência”, pois, sendo o estado “a única associação ativa, aspira e absorve pelo imposto e pelo empréstimo todo o capital disponível e distribui-o, entre os seus clientes, pelo emprego público”.
Voltando ao 13 de maio.
Feito o beija-mão, Joaquim Nabuco recebeu as ondas intermináveis de aplausos. “Delírio no recinto, meu nome muito aclamado”, anotou em seu diário. Quem acha que o Carnaval dura muito não imagina o que foi a festa da libertação dos escravos: sete dias de feriado nacional, todo mundo na rua, bandas e cortejos, prédios enfeitados, espetáculos gratuitos nos teatros. No dia 17, quando aconteceu a missa celebratória diante de 20 000 pessoas, Nabuco e Isabel de novo se cruzaram. Ela passava de carruagem, cercada pela massa eufórica. Nabuco surgiu e, como um Moisés no Mar Vermelho, caminhou entre a multidão, que se abriu para lhe dar passagem. Cumprimentou a princesa e lhe ofereceu camélias brancas, a flor do abolicionismo. Era festa, mas o destino dela e da monarquia que representava já estava selado. Sabendo disso, Nabuco prometeu a si mesmo: “Eu hei de ser o último dos monarquistas. Preciso bater-me pela princesa, a nossa Lincoln, como me bati pela abolição”. Como homem honrado, cumpriu o prometido.
(Fonte: Veja, 13 de janeiro de 2010 – ANO 43 – N° 2 – Edição 2147 – HISTÓRIA/ Por Vilma Gryzinski – Pág: 100/111)