Primeiro casal gay ‘de papel passado’ do mundo

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A história do 1º casal gay ‘de papel passado’ do mundo, que ficou junto até a morte

Há 30 anos (7 de junho de 1989), Dinamarca se tornava o primeiro país a reconhecer a união civil homoafetiva; alguns meses depois, lei entrava em vigor com celebração de união de Axel e Eigil Axgil, que entraram para a história do movimento LGBT.

 

 

Em 7 de junho de 1989, um documento histórico foi publicado na Dinamarca. Assinado pela rainha Margrethe 2ª, chancelava, “com a mão e o selo reais”, uma lei pioneira aprovada pelos parlamentares dinamarqueses: a partir de então, o país escandinavo passaria a ser o primeiro do mundo a reconhecer oficialmente a união estável civil entre casais homoafetivos.

“Duas pessoas do mesmo sexo podem ter sua união estável registrada”, garante o primeiro artigo do ato legislativo.

Apesar de devidamente aprovada pelos parlamentares e rubricada pela rainha, a lei só entraria em vigor alguns meses depois, em 1º de outubro de 1989 – o tempo se fazia necessário para que os órgãos públicos adaptassem seus procedimentos internos.

O primeiro casal a ser contemplado com o direito civil histórico já vivia junto há quatro décadas e era bastante conhecido entre aqueles que lutavam pelos direitos da comunidade LGBT: os ativistas Axel Lundahl-Madsen (1915-2011) e Eigil Eskildsen (1922-1995) que, como prova de amor, já haviam adotado o sobrenome Axgil – inventado a partir da junção de seus nomes.

Tom Ahlberg, o prefeito de Copenhague, abriu o evento com um pronunciamento que reconhecia a importância da data. Em seguida, oficiou a cerimônia. Foi ele que perguntou a Axel Axgil se aceitaria Eigil Axgil como companheiro – e vice-versa. E, claro, ouviu duas vezes um “sim”. Até o fim daquele ano, 270 homossexuais homens e 70 mulheres registraram suas uniões civis na Dinamarca.

“Nunca poderíamos nem sequer imaginar que chegaríamos tão longe”, disseram eles, logo após a cerimônia. “Mantenham as mentes abertas. Venham e continuem lutando. É a única maneira de mudar as coisas. Se as pessoas saírem do armário, este tipo de legalização vai ocorrer em todos os lugares.”

 

Como afirma o verbete dedicado a eles na enciclopédia Britânica, a honraria de serem os primeiros a “se casarem” se justificava. “Seus esforços sociais e políticos finalmente valeram a pena quando, em 1989, a Dinamarca se tornou o primeiro país a legalizar as uniões civis do mesmo sexo. Axel e Eigil trocaram votos na prefeitura de Copenhague”, aponta a enciclopédia.

Conforme cronologia preparada pela organização LGBT Danmark, a legalização da união civil homoafetiva foi resultado de “décadas de militância” e serviu para “inspirar e motivar a adoção” de leis similares em outros países pelo mundo.

 

“A lei da união estável [para pessoas do mesmo sexo, promulgada em 1989]era praticamente idêntica à já existente lei dinamarquesa para casamentos civis, com a exceção de alguns direitos familiares relacionados à adoções e nacionalidade. As exceções foram sendo removidas ao longo dos anos seguintes”, contextualiza a organização.

 

 

Ativismo pioneiro

Axel e Eigil Axgil: os pais do moderno movimento gay dinamarquês — (Foto: Arquivo pessoal Axel e Eigil Axgil)

 

Inspirado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Organização das Nações Unidas em dezembro de 1948, Axel engajou-se para criar uma organização de defesa e reinvindicação de direitos para gays, lésbicas e bissexuais. Nasceu assim a Kredsen af 1948 (“Círculo de 1948”). No ano seguinte, o grupo foi rebatizado como Forbundet af 1948 (“Associação de 1948”, ou simplesmente F-48 – em 1951 já congregava 1339 membros, na Dinamarca, na Noruega e na Suécia.

“Com o fim da Segunda Guerra, o foco passou a ser os valores e direitos democráticos. E os homossexuais começaram a se organizar eles próprios. Ao contrário de outros grupos que foram perseguidos durante a Guerra, homossexuais não foram incluídos na Declaração dos Direitos Humanos de 1948”, contextualiza histórico fornecido pela LGBT Danmark, o nome atual da organização desde 1985.

O ativista Axel conheceu Eigil em um encontro do grupo ativista em 1949. Nunca mais se separaram.

Juntos criaram um jornal com conteúdo destinado à comunidade homossexual, o ‘Vennen’ – “Amigo”, em português. Também criaram uma agência de modelos e uma empresa de fotografia, ambos especializados na temática gay.

 

Acabaram presos em 1955, por conta da publicação de fotos de homens nus. Conforme declararam autoridades dinamarquesas da época, o material, “embora não obsceno, poderia ser considerado especulação comercial com intenções sensuais”.

 

O casal Axgil refez a vida criando uma pequena pousada no norte da Dinamarca, preocupada principalmente em atender com respeito e dignidade o público LGBT. Nunca deixaram de se envolver no ativismo.

 

Não à toa, foram os protagonistas da união civil homossexual número um, em 1 de outubro de 1989, em cerimônia acompanhada por uma multidão de ativistas e simpatizantes que se aglomerou ao redor da prefeitura de Copenhague, onde o ato foi firmado.

Eigil morreu em setembro de 1995, aos 73 anos. Axel ainda seguiria uma voz influente entre os ativistas LGBT até sua morte, em outubro de 2011, aos 96 anos. Em 2013, foi aclamado postumamente pela organização Equality Forum como um dos 31 ícones mundiais LGBT.

“Poderíamos dizer que eles estavam muito à frente de seu tempo”, avalia, em comentário à BBC News Brasil, o sociólogo Barry Adam, autor do livro The Rise of a Gay and Lesbian Movement (A Ascensão do Movimento Gay e Lésbico, em tradução livre) e professor da Universidade de Windsor, no Canadá.

Em seu livro, Adam cita a oficialização da união dos Axgil como um ponto fundamental para a consolidação dos direitos dos homossexuais no mundo. Recorda que eles “celebraram com grande festa pelas ruas de Copenhague” e que o ato em si era emblemático dado que a população LGBT, em maior ou menor grau ao redor do mundo, vivia sob perseguições e precisava esconder seu status civil real – vivendo em “casamentos ilegais”.

A lei

Certidão de casamento de Axel e Eigil Axgil — (Foto: Arquivo pessoal/Axel e Eigil Axgil)

Professor de Direito da Universidade de Yale, o jurista e escritor William Eskridge conta como foi a aprovação da lei dinamarquesa no livro Gay Marriage: for Better Or for Worse?: What We’ve Learned from the Evidence.

Ele relata que houve um longo debate sem precedentes no Parlamento, com intensa participação de setores da sociedade, sobretudo religiosos “cristãos fundamentalistas”, tanto sacerdotes quanto líderes leigos.

“Uma petição assinada por 122 padres dinamarqueses instigava que os parlamentares engavetassem a lei. ‘O Estado não pode fazer leis contra o comando de Deus’, dizia o texto. Os religiosos temiam que a lei ‘privilegiasse anormalidades'”, relata o jurista.

Mesmo entre os políticos houve discussões semelhantes. Quando o projeto foi posto em discussão, um parlamentar, em tom rude, argumentou que a lei era “uma catástrofe” e que colocaria a Dinamarca “contra todo o resto do mundo”.

“Poucas vezes houve no Parlamento dinamarquês um debate tão fundamental quanto esse, no qual os membros discutiram, e discordaram muitas vezes, sobre o papel da religião na hora de legislar”, pontua Eskridge.

Os que defendiam a lei, por outro lado, argumentavam que havia chegado “o dia em que uma forma de discriminação contra gays e lésbicas seria removido dos livros de Direito”.

No dia 23 de maio de 1989, a lei foi votada. Quando o placar apareceu, uma festa no público que acompanhava a votação: 71 votos a favor, 47 contrários, cinco abstenções. “Axel e Eigil Axgil, os pais do moderno movimento gay dinamarquês, sorriram triunfantes”, narra Eskridge.

O britânico Richard Coles, jornalista, músico e padre da Igreja Anglicana, afirma que costuma pensar no casal Axgil quando celebra casamentos.

“Foi a Dinamarca que abriu o caminho, com as uniões estáveis civis – como eram chamados os protótipos dos casamentos gays – cuja lei entrou em vigor em 1989.”

“O primeiro casal a oficializar a união foi Axel e Eigil Axgil, parceiros e ativistas que haviam participado da campanha para mudar a lei. Eles adotaram o sobrenome Axgil, uma combinação de seus nomes, como uma expressão de seu compromisso mútuo”, escreve ele, no seu livro Bringing in the Sheaves: Wheat and Chaff from My Years as a Priest.

“Essas parcerias foram contraídas apenas em cerimônias civis, mas a Igreja da Dinamarca permitiu que seu clero realizasse bênçãos de casais do mesmo sexo, sob o argumento de que são pessoas, não instituições, que são abençoadas”, diz o sacerdote.

“Em 2010, o parlamento dinamarquês permitiu que casais do mesmo sexo adotassem. E, em 2012, as uniões civis foram substituídas por casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Esses casamentos podem ser realizados em igrejas, mas o clero não é obrigado a oficiá-los se não quiserem”, prossegue o sacerdote.

“Eigil Axbil morreu em 1995 aos 73 anos. Axel Axgil morreu em 2011 aos 96. Muitas vezes penso neles quando estou realizando casamentos de casais que se encaixam nos critérios que a Igreja exige – mas em cujo futuro nem mesmo o jogador mais imprudente apostaria.”

(Fonte: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/06/07 – MUNDO / NOTÍCIA / Por BBC – 07/06/2019)
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